O “dividendo” e a “folga” orçamental

Portuga beneficia hoje de um "dividendo" orçamental e não de uma "folga". A questão é saber como o devemos utilizar,

Tinha previsto aqui que o défice em contas nacionais no 1º semestre ficaria abaixo dos 2% do PIB. O INE avançou esta sexta-feira um valor de 1,9%. Este valor coloca grande confiança num défice em 2017 abaixo de 1,5%. Com a previsão de crescimento para 2017 está nos 2.5% (o que é um ponto percentual (p.p.) acima do previsto no OE), isso traz uma “folga” orçamental de 0,4 p.p. do PIB (qualquer coisa como 800 M€), a que se soma uma “folga” nos subsídios de desemprego (porque o desemprego tem caído mais do que o previsto face ao crescimento) de 200-300 M€ e alguma margem nos juros da dívida pública (200 M€), bem como outros efeitos positivos decorrentes da política monetária do BCE, com o aumento dos dividendos do Banco de Portugal à cabeça.

De facto, se a despesa das Administrações Públicas (AP) ficar abaixo dos 86 mil M€ que estão orçamentados (por via das poupanças atrás descritas no subsídio de desemprego e nos juros deveria ficar abaixo dos 85 mil M€) e com uma previsão de receita que poderá chegar aos 82-83 mil M€, o défice ficaria em torno dos 2 mil M€, ou seja, cerca de 1% PIB. Mas para chegar a 1% de défice, é imperioso que o governo mantenha a pressão em conter a despesa de consumos e de investimento público, cumprindo o OE/2017 do lado da despesa.

O que creio que vai suceder (e já está a ocorrer na saúde e sobretudo nas regiões e autarquias – calendário politico assim o obriga) é que não podendo ultrapassar a despesa fixada no OE para o total das Administrações Públicas (dado que isso obrigaria, nos termos da Lei de Enquadramento Orçamental, a um OE retificativo), o governo irá usar a “folga” das prestações sociais e dos juros para aumentar despesa nessas áreas.
Isto significa que a minha previsão é que o défice fique abaixo de 1,5%, mas próximo daquele valor (eu arrisco dizer 1,2% – 1,3%). Mas pode ser que o governo (e a economia) me surpreenda pela positiva, continue a controlar a despesa, e o défice fique abaixo de 1%.

No entanto, como tenho vindo a alertar, esta boa performance no défice resulta fundamentalmente do efeito cíclico. O défice estrutural desde 2015 que se mantém acima dos 2%, estando ainda longe do objetivo europeu (que para Portugal é de +0,25%, mas que se não fosse a nossa dívida pública ser tão elevada, seria de -0,5%).

A boa performance no défice tem levado muitos, sobretudo à esquerda e extrema-esquerda a clamar por uma consolidação orçamental mais lenta que o previsto e para a existência de “folgas” orçamentais, exigindo assim por uma redução do IRS, mas sobretudo por um aumento de despesa. Creio que estão equivocados, e passo a explicar as razões.

Como referi atrás, a melhoria do défice resulta do ciclo económico e do efeito do crescimento, via estabilizadores automáticos. Esta melhoria é designada em Finanças Públicas por “dividendo” orçamental.

Note-se que é muito mais correto chamar-lhe “dividendo” orçamental que “folga” orçamental. Porque “folga” pressupõe que existe uma margem orçamental permanente que pode ser usada sem restrição temporal. Já “dividendo” pressupõe aquilo que efetivamente temos neste momento: receita cíclica, que durará por um período limitado de tempo, até à próxima recessão. A questão é como devemos usar esse “dividendo” orçamental?

Como referi, muitos à esquerda e extrema-esquerda consideram que devemos usar este “dividendo” para reduzir o IRS, mas sobretudo para aumentar a despesa. Trata-se de aumentar o investimento público, dar mais dinheiro aos serviços públicos para consumos intermédios, reforçar as prestações sociais e aumentar os salários na função pública.

Ora, aumentar a despesa tem um efeito que é em grande medida estrutural. Ou seja, se aumentarmos as prestações sociais e os salários, será bastante difícil mais tarde reverter ou atenuar esse aumento (sobretudo os salários, vide as decisões do Tribunal Constitucional em 2012-2014). É verdade que aumentar os gastos de consumos intermédios e investimento não tem esse efeito estrutural, dado que é uma despesa com menor rigidez.

No entanto, aumentar a despesa nesta fase encerra três problemas centrais:

  1. O primeiro é exatamente o de financiar despesa estrutural com receita cíclica.
  2. O segundo é que voltamos a querer fazer uma política pró-cíclica, estimulando os gastos públicos num período de crescimento económico. Voltamos a repetir os erros do passado: não consolidar do ponto de vista estrutural, não usar o “dividendo” orçamental para melhorar as contas públicas, sobretudo a dívida pública (já lá iremos) e não ter uma posição orçamental que nos permita, em períodos de recessão, ter uma política contra cíclica. Finalmente, o erro de sempre, de acreditar no efeito multiplicador da despesa pública. Se ele existisse, então os défices seriam autofinanciáveis (e nem preciso explicar o motivo pelo qual não são, de tão evidente que isso deveria ter sido em 2009-2011). Será que não aprendemos nada? Vamos voltar a fazer a mesma receita que conduziu ao desastre de 2011?
  3. O terceiro erro tem a ver exatamente com a dívida pública. É aqui a meu ver que se encerra toda a discussão. A redução do défice tem de ser feita à velocidade mais rápida que for possível. Não há “dividendo” orçamental para gastar. E mesmo para reduzir a carga fiscal deve ser feito com muito cuidado (e privilegiando a competitividade da economia e a proteção dos mais desfavorecidos).
    Isto porque conforme já demonstrei aqui, Portugal tem de se preparar para a próxima recessão. Embora ninguém possa prever quando ela decorrerá, todos sabemos que iremos ter no futuro novas recessões. Nós não podemos definir, com absoluta certeza, a probabilidade de ocorrer uma recessão no próximo ano. Mas podemos definir com certeza que nos próximos 10-15 anos voltaremos a enfrentar uma crise económica. Ora, Portugal só conseguirá resistir a uma nova recessão se tiver as suas contas públicas equilibradas. Isso significa um saldo estrutural próximo de zero (o que implicaria neste momento um superavit nominal de pelo menos 1%, e como tal, um saldo primário próximo dos 6%) e uma dívida pública próximo dos 90%. Como é óbvio, sendo estas variáveis dinâmicas entre si, quando a dívida pública se aproximar dos 90% poderemos “relaxar” um pouco na variável défice. Mas até lá não.

O que deve então ser feito? Se assumirmos que entre 2017 e 2021 teremos um crescimento nominal de 4%/ano, então o PIB passará de 191 mil M€ em 2017 para um valor em 2021 de 223 mil M€. Neste momento, se a política orçamental tivesse sido conduzida de outra forma, com reposições mais lentas, Portugal poderia ter em 2017 um saldo nominal próximo de zero.

Se assumirmos esse saldo nominal zero e considerarmos um saldo nominal positivo de 1% para os anos 2018-2021, temos que (excluindo operações “one-off” relacionadas com o setor financeiro que possam vir a ocorrer) a dívida pública seria de 125% em 2017 e chegaria a 2021 no valor próximo de 103%. E se, por uma grande sorte e fortuna, a economia portuguesa mantivesse o crescimento nominal de 4%/ano até 2025 (e portanto assumindo uma recessão daqui a cerca de 10 anos), então as condições de défice atrás descritas (um excedente nominal de 1% do PIB) levariam a dívida pública para um valor abaixo de 90%. Assumindo este crescimento de 4% ano, o PIB em 2025 seria de 260 mil M€. Como haveria excedentes nominais, o valor nominal da dívida pública também baixaria, e seria, em 2025, de 220 mil M€, representando cerca de 85%.

É um esforço colossal? Em parte, dado que obriga ainda a uma consolidação orçamental estrutural (corte de despesa e/ou aumento impostos) de 2 p.p. Mas é inferior ao esforço feito entre 2010 e 2014. Mas é fundamental para corrigir erros de 20 anos. E para nos prepararmos para os desafios futuros.

Toda a linha de pensamento de quem desvaloriza a questão da divida pública tende a ser de curto prazo. Entendem que como estamos a ter um período de alguma bonança, que a pressão sobre a divida pública se reduziu e o que aconteceu em 2008-2011 não voltará a suceder. Na prática, preferem não ver o problema. Parte dessa atitude resultará de um cansaço do processo de consolidação orçamental vivido nos últimos anos. Parte resulta de não haver coragem política para enfrentar os problemas. Parte resulta também de um certo “laxismo” e preferência por políticas pró-cíclicas de aumento da despesa.

De fato, e a literatura económica sobre isso é abundante, existe uma enorme tendência para em fases de um maior crescimento económico achar que se vai manter indefinidamente. Assim, relaxam-se as metas orçamentais e tende-se a tomar medidas que levam a uma maior rigidez da despesa pública (aumento de salários, prestações sociais e benefícios fiscais).

Mas apesar de tudo o que ouvimos, não duvidem: Os “90% são os novos 60%”. E como tenho vindo a escrever aqui no ECO: “feliz o país que em tempos de (alguma) bonança pensa na próxima crise”.

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