Angola: o legado de José Eduardo dos Santos e os desafios de João Lourenço
A sucessão política do Presidente José Eduardo dos Santos era uma questão crescentemente inevitável. O processo foi preparado com tempo e com todo o cuidado.
O receio da Primavera Árabe e do seu potencial efeito de contágio
Os acontecimentos de Dezembro de 2010 que dariam origem à transição para a democracia na Tunísia, e que seriam o ponto de partida no que ficaria conhecido mais tarde como a Primavera Árabe, viriam a suscitar nos anos seguintes receios em Angola quanto a um eventual efeito de contágio. Afinal, o Presidente José Eduardo dos Santos era um dos líderes políticos há mais tempo em funções executivas na África Subsariana.
Como na altura referi, por diversas razões, a probabilidade de um efeito de contágio que se estendesse a Angola era diminuta.
- Em primeiro lugar, porque não existia contiguidade geográfica entre o Magrebe, alguns Estados da África Subsariana que foram varridos pela instabilidade política, e Angola.
- Segundo, não existia um passado comum. Pura e simplesmente, a geografia e a história não funcionariam como um transmissor de qualquer tipo de estímulo político e social.
- Em terceiro lugar, tendo terminado apenas em 2002, os 27 anos de guerra civil estavam, e continuam a estar, ainda muito vivos na memória colectiva angolana. É certo que nem todos os angolanos beneficiaram de igual modo dos dividendos da paz, mas é indiscutível e inegável que as condições de vida melhoraram muito desde então. Ora, desde 2002, o crescimento económico nunca funcionou como potencial motor de instabilidade política, antes pelo contrário.
- Em quarto lugar, nos últimos 15 anos nunca existiu uma alternativa concreta à hegemonia do MPLA, ou uma figura carismática que liderasse a oposição ao Presidente José Eduardo dos Santos. Assim, ao contrário do que aconteceu durante a Primavera Árabe, tanto quanto era possível antecipar, nunca se vislumbrou um catalisador, ou descontentamento em proporções significativas, que mobilizasse os angolanos para a mudança política pela via da ruptura. Deste ponto de vista, em Angola nada mudou entre 2011 e 2017.
O problema da sucessão
Isto dito, a sucessão política do Presidente José Eduardo dos Santos era uma questão crescentemente inevitável, não tanto por ser um dos líderes políticos há mais tempo em funções executivas na África Subsariana, mas sobretudo devido à sua idade e aos crescentes problemas de saúde. O processo foi preparado com tempo e com todo o cuidado. O primeiro passo foi a aprovação de uma nova Constituição, em Janeiro de 2010, que veio estabelecer que o cabeça de lista do partido mais votado nas eleições gerais seria automaticamente eleito para Presidente da República.
A aprovação da Constituição, importa referir, gerou elevadas expectativas quanto às eleições gerais de Agosto de 2012, mas José Eduardo dos Santos seria, uma vez mais, o candidato do MPLA. Perante a hipótese de uma eventual renúncia a meio do mandato, assumiu particular importância a escolha do número dois da lista do MPLA, que por esta via era o Vice-Presidente e potencial sucessor de José Eduardo dos Santos. Como era esperado na altura, a escolha recaiu em Manuel Domingos Vicente.
Não são conhecidos os motivos que levaram o Presidente José Eduardo dos Santos a continuar no cargo. Em teoria, o Presidente poderia permanecer no poder até 2022, mas era evidente há algum tempo que se procurava encontrar, de forma discreta, uma solução que fosse consensual no interior do MPLA.
O problema da sucessão era tanto mais relevante tendo em conta que a contestação à liderança de José Eduardo dos Santos — essencialmente à margem do quadro parlamentar, uma vez a UNITA se revelava incapaz de agregar o descontentamento e de protagonizar uma alternativa —, assumia contornos inéditos. O caso de Luaty Beirão, não colocando em causa a ordem e a estabilidade em Angola, muito longe disso, de qualquer modo constituiu um sinal relevante de que algo teria eventualmente de mudar muito em breve.
A transição pacífica pela via eleitoral
A degradação da situação económica, fruto da quebra das receitas petrolíferas, veio tornar mais complicada a segunda metade do mandato presidencial de José Eduardo dos Santos, ao ponto de alguns observadores anteciparem que os protestos políticos poderiam aumentar, o que não viria a suceder. Como acontece muitas vezes, a partir de um episódio fazem-se extrapolações excessivas, fruto de wishful thinking e de erros de análise, o que sucedeu a partir do caso de Luaty Beirão.
De qualquer forma, podendo continuar no cargo, a verdade é que muito possivelmente este mandato presidencial era a última janela de oportunidade em que o Presidente poderia ditar os termos da sua sucessão, controlando mais ou menos as diversas peças no tabuleiro de xadrez. Muito possivelmente tendo isso em conta, no congresso do MPLA, em Agosto de 2016, José Eduardo dos Santos anunciou que tomara a decisão de deixar a vida política activa em 2018.
Eleito vice-presidente do MPLA, o ministro da Defesa, João Lourenço — alguém cuja autonomia e independência é reconhecida por todos —, viria a ser o escolhido, em Dezembro de 2016, pelo partido — num processo absolutamente irrepreensível — para suceder a José Eduardo dos Santos e para concorrer ao cargo de Presidente nas eleições gerais de 2017.
Apesar dos receios de um eventual desaire, João Lourenço e o MPLA conseguiriam uma vitória política confortável, obtendo 61% dos votos e 150 deputados. Ainda que tal corresponda a um resultado inferior ao alcançado por José Eduardo dos Santos em 2012 — o que, de certo modo, nem é negativo —, em todo o caso veio legitimar a solução política encontrada pela cúpula do MPLA e personificada por João Lourenço.
Assim, confirmava-se por esta via que os receios de uma eventual transição por ruptura, algo em que a África Subsariana é pródiga, eram manifestamente infundados no caso angolano. Um dos líderes políticos há mais tempo em funções executivas na África Subsariana abandonava o poder pelo seu próprio pé e nos seus termos. Igualmente importante, José Eduardo dos Santos fica em condições de ter uma palavra a dizer no day after.
O legado de José Eduardo dos Santos e os desafios de João Lourenço
No sentido de fechar em definitivo a sua intervenção política, José Eduardo dos Santos terá ainda de abandonar a liderança do MPLA, o que, salvo alteração nos planos, ocorrerá em 2018, tal como previsto. Com isso ficará encerrado o seu longo ciclo político na vida pública angolana e João Lourenço terá o caminho aberto à sua plena afirmação.
Cerca de 25 anos depois do final da guerra civil, a evolução angolana é indiscutível e o mérito cabe inteiramente a José Eduardo dos Santos. Dito isto, muito há ainda para fazer, como não poderia deixar de ser. Os principais desafios que João Lourenço terá pela frente passam por garantir uma distribuição da riqueza mais simétrica, um combate à corrupção com resultados palpáveis, a criação de mais oportunidades para todos e a promoção de um sistema político mais inclusivo.
Naturalmente, esta é a altura para um primeiro balanço — ainda sem o distanciamento temporal necessário para uma análise mais fria — do legado José Eduardo dos Santos. O Presidente cessante deixa ao seu sucessor um país perfeitamente pacificado, com um sistema político estabilizado e em plena consolidação, e um Estado soberano legitimamente respeitado pelos seus pares nos planos regional e internacional. Não é, diga-se, pouco.
Uma última palavra, um pouco à margem do tema central deste artigo, sobre as relações bilaterais entre Angola e Portugal. É indisfarçável que estas atravessam um mau momento, por razões que são conhecidas e com erros de parte a parte. Não estando ainda reunidas as condições para a sua plena normalização política, em todo o caso a presença do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na tomada de posse do Presidente João Lourenço poderia e deveria ser aproveitada para se ter uma conversa franca entre os representantes dos dois Estados que, por inúmeras razões, têm a obrigação de se entender em nome do interesse comum. Afinal, há muito mais que os une do que aquilo que os separa.
O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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