A transição espanhola

  • Filipe Vasconcelos Romão
  • 1 Outubro 2017

A reacção manifestamente exagerada do governo de Espanha poderá compreender-se à luz de uma visão estritamente formal que tem da democracia.

A efectiva materialização do princípio democrático está sempre dependente de um sistema jurídico constitucional que o proteja. Sem uma constituição (que não tem necessariamente de ser escrita) e um aparelho legal que, em primeira linha, proteja os direitos dos cidadãos não há uma democracia efectiva. No entanto, a democracia não pode resumir-se a um conjunto de rituais, como o voto a cada quatro anos para eleger parlamentos nacionais, regionais ou municipais. A democracia também se afere pelas decisões tomadas pelos políticos e pela sua capacidade de adaptação a novos desafios. A juventude do regime espanhol conjugada com o modelo de transição que acabou com a ditadura talvez explique a rigidez da democracia espanhola e a sua pouca flexibilidade face ao actual desafio catalão.

O processo de transição democrática tem sido endeusado em Espanha. O discurso generalizado, veiculado durante anos pelos dois maiores partidos, sempre reprimiu toda e qualquer tentativa de criticar a versão oficial, segundo a qual este seria um processo não violento em que a própria ditadura soube transformar-se em democracia. A cereja no topo desta narrativa é o elogio ao papel de Juan Carlos I, o rei que, ungido com o poder absoluto por Francisco Franco, soube abrir mão de tudo o que lhe foi oferecido em nome da democratização do regime.

Mais do que a assumir partido numa luta entre nacionalismos, o conflito catalão deveria levar-nos antes a reflectir profundamente sobre a forma como o dito “processo de transição” condicionou a democracia espanhola a longo-prazo. Observando o período entre 1975 (morte de Franco) e 1982 (maioria absoluta do PSOE e primeira alternância de poder), só podemos considerar que a transição foi pacífica por termos como contra-ponto a guerra civil (1936-1939) e porque o fantasma de uma fragmentação ideológica e identitária violenta pairava na política da época. A democratização espanhola foi dolorosa e construída à custa da vida de centenas de pessoas, mortas pelo terrorismo de extrema-esquerda e de extrema-direita e pelo próprio Estado espanhol.

Terá a transição sido mesmo essa “vaca sagrada” da história contemporânea espanhola? A resposta é não. Terá o modelo de mudança na continuidade sido efectivamente vantajoso face a uma ruptura como ocorreu em Portugal? Aqui, a resposta é sim. E é na divergência entre estas respostas que reside o grande problema da Espanha actual. A traumática memória da guerra civil, o poder das forças armadas e as estruturas do Estado franquista não teriam permitido uma ruptura sem custos mais elevados. No entanto, essa realidade não pode tornar-nos acríticos face ao processo, sobretudo num momento em que as novas gerações, já nascidas em democracia, não guardam memórias da guerra ou da ditadura.

A Espanha conseguiu o prodígio de construir um regime democrático e de incorporar um Partido Comunista que era visto como o grande inimigo e traidor, mas não conseguiu democratizar a fundo as suas instituições. Enquanto Portugal, por exemplo, procedeu à rápida dissolução da polícia política depois do 25 de Abril, Espanha transformou gradualmente a sua Brigada Político-Social em Brigada Central de Informação, tendo a esmagadora maioria dos seus quadros sido integrados noutras estruturas da Polícia Nacional. O Partido Popular, actualmente no poder, foi fundado, enquanto Alianza Popular, por figuras conotadas com o franquismo menos transigente.

Quer tudo isto dizer que Espanha é uma ditadura e que os catalães têm, por isso, direito à autodeterminação? Claro que não. A constituição espanhola é o que é e o papel que a maioria do nacionalismo catalão teve na sua elaboração, aprovação e em mais de 30 anos da sua aplicação não podem ser apagados. Porém, a reacção manifestamente exagerada do governo de Espanha poderá compreender-se à luz de uma visão estritamente formal que tem da democracia. A qualidade de uma democracia também se vê na flexibilidade com que os agentes políticos actuam em função de novos desafios. Adolfo Suárez, um dos melhores políticos que Espanha produziu, era exímio nessa arte. Caso contrário, nunca teria legalizado o Partido Comunista em 1977, correndo enormes riscos políticos e pessoais.

Ao tentar impedir com recurso à Guarda Civil uma votação que poderia ter desvalorizado num momento em que estava desacreditada pela própria inconstitucionalidade e pela forma ilegítima com que foi “validada” pelo parlamento regional catalão a 6 de Setembro, Mariano Rajoy forneceu a vitimização que faltava a um nacionalismo catalão debilitado. A estupidez suprema será a eventual prisão de Puigdemont no Palácio da Generalitat. Caso se cumpra, haverá um mártir e Espanha terá sido abandonada de vez pela sociedade catalã.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

  • Filipe Vasconcelos Romão
  • Presidente da Câmara de Comércio Portugal – Atlântico Sul e professor universitário

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