As democracias são mortais
Sem respirarmos liberdade, estaremos sempre manietados e sujeitos a poderes sem rosto e a influências negras.
A natureza humana é perversa e a política assenta na natureza humana, logo, é também perversa. A política sem liberdade vale pouco e a política que não serve para melhorar a vida das pessoas não vale nada. A democracia do século XXI tem sofrido diversos ataques: a pós-verdade, os extremismos, o terrorismo, a insanidade das redes sociais, a corrupção. Tudo isto somado leva ao afastamento das pessoas dos partidos e de uma classe política da qual têm perdido a confiança.
O filósofo Julio Hubard dizia que «a democracia é uma cultura não de pedras mas de palavras. O segredo é a voz no espaço público». Porém, os exaltados e indignados tomaram conta do enorme espaço público que hoje tem o seu ritmo marcado pelas agendas mediáticas. A cultura da racionalidade e o tão importante, mas cada vez mais ausente, silêncio têm sido ultrapassados nas curvas perante insignificâncias sem sentido, temas que são palha para narcotizar audiências e boçalidades que dão soundbytes e “click baits”.
«A palavra que melhor define a democracia é diálogo». Ouvi este aforismo na magnífica série dinamarquesa, “Borgen”. O que é curioso é que com a crescente capacidade das pessoas se exprimirem e comunicarem, e as novas ferramentas digitais poderem aproximar as pessoas e, naturalmente, reforçarem o diálogo, o que verdadeiramente acontece é o contrário. As pessoas isolam-se, atolam-se no seu universo de preconceitos e de pensamentos unívocos sem espaço ao contraditório. O mundo em vez de unir, está a isolar. Em vez do diálogo, as pessoas conversam para uma parede. Em vez da democracia, crescem tiques ditatoriais e intolerância. É o paradoxo da vida moderna.
Para quem acompanha e se lembra de algumas séries televisivas relacionadas com o poder, é natural que se recordem da formidável “West Wing”, criada por Aaron Sorkin. Cerca de sete temporadas de pura utopia, com um presidente americano que seria o modelo na execução das suas funções, uma equipa de luxo devotada à procura do bem comum e um mundo, apesar dos conflitos, em que tudo se resolvia pelos melhores valores das sociedades democráticas. Mas esse optimismo que perpassava nessa construção ideal não é real.
Porém, como arranquei no início do texto, a política é perversa. Tem muita bondade, mas a ela sobrepõe-se o cinismo, a sobrevivência e inúmeras pulsões do pior que os homens têm no seu âmago. Gosto de relembrar outras séries, porque o universo televisivo tem opções para todos os gostos e são ricas em diálogos mais verdadeiros. Podia ir a “Boss”, mas prefiro recordar o mítico “Polvo” onde na sua quarta temporada rezavam algumas pérolas, mais sinistras mas verdadeiras: «Você não é de confiança, ainda acredita na honestidade, um conceito abstracto que só encontra nas gramáticas»; «Sabes o que pensam da política? Que é um pouco como as moscas: uma coisa suja, feia, inútil e dispendiosa»; «Para a democracia, a corrupção é exactamente como o óleo para o motor. Tem um cheiro nauseabundo e suja mas não se pode passar sem isso». E, infelizmente, quem está a ler estas linhas sabe que este é o caldo que gira em torno das democracias.
Podem dizer que estou pessimista, mas sou essencialmente pragmático. Acredito no bem contra o mal, acredito na regeneração das práticas e na melhoria da qualidade das democracias. Isso é um dos bens essenciais para a nossa sanidade e qualidade de vida. Sem respirarmos liberdade, estaremos sempre manietados e sujeitos a poderes sem rosto e a influências negras. Mas não posso esquecer que Atenas, o berço da democracia, subsiste apenas como uma referência teórica porque outras civilizações e muitas más práticas a foram apagando do mapa.
PS: Um ano de ECO. Quero agradecer o convite que desde a primeira hora o António Costa me fez. Porque tenho gosto em escrever neste espaço de liberdade. Que o ECO tenha muitos anos de vida. E um abraço especial aos jovens talentosos jornalistas que aqui ajudam todos os dias a que leitores leiam um bom jornal. O amanhã será melhor pelo trabalho deles.
Nota: Por decisão pessoal, o autor não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.
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