Sozinha em casa
As receitas de cozinha de Audrey Hepburn, reunidas pelo seu filho mais novo. Memórias de tempos felizes? Hummm…
Há quase tantos livros de cozinha como maus cozinheiros. Muitos deles até ostentam o título de chef. Quem sabe disto à séria recomenda o “Larousse Gastronomique” (na edição king size) e o “The Professional Chef”, do The Culinary Institute of America. Depois, mais terra-a-terra, o nosso “Livro de Pantagruel” em versão brasileira (“O Livro de Dona Benta”) ou italiana (“Il Cucchiaio d’Argento” e “Il Talismano della Felicitá”), entre obras argentinas sobre grelhados, etc., etc.
Perante estes colossos, um livro de receitas de Audrey Hepburn poderá parecer um devaneio, uma frivolidade de uma boneca de luxo que – julgamos nós – nunca pôs os pés numa cozinha. Talvez; talvez a actriz nunca tenha grelhado febras de porco ou assado sardinhas na brasa, preferindo as proustianas madeleines, um requintado penne alla vodka, uma salada caprese tricolor ou, enfim, um fondue chinês (à Suíça), um snobérrimo “Gstaad’s Pesto” e uma mousse de chocolate servida na Casa Branca. Da sua biografia não consta, ao que sabemos, que apreciasse cozido à portuguesa ou tripas à moda do Porto, ainda que o livro, raios!, tenha receitas de pratos do país vizinho, como gaspacho à andaluza e tortilha de ovos.
“Audrey at Home – Memories of My Mother’s Kitchen” é um livro encantador, floral, que irradia elegância e jóia de viver (joie de vivre, no original francês). Escrito por Luca Dotti, filho do seu segundo casamento, recorda-nos, logo nas primeiras páginas, que Audrey passou fome na Holanda, a fome dos tempos de guerra, quando a mãe chegou a aconselhá-la a beber copos de água para ter alguma coisa a pesar-lhe no estômago, iludindo a escassez de alimentos; na Holanda, morreram 22 mil pessoas de fome, nos últimos meses de guerra. Ficamos também a saber que existiu uma ligação entre Audrey Hepburn e a infortunada Anne Frank; explicando melhor, um tio de Audrey (Otto, o primeiro civil a ser fuzilado pelos nazis na Holanda) é mencionado no célebre diário da adolescente com destino trágico, agora adaptado em versão BD por Ari Folman e David Polonsky (e recentissimamente publicado entre nós pela Porto Editora).
Mais ainda, Audrey teve acesso ao manuscrito do diário de Frank antes sequer de este ser impresso e se tornar um dos livros mais lidos em todo o mundo. Sabia de cor passagens inteiras do Diário, e leu-as numa digressão intitulada “From the Diary of Anne Frank”, que percorreu os Estados Unidos e Londres, em 1990-1991, com os lucros a reverterem para as crianças da UNICEF.
O livro de Dotti inscreve-se, creio eu, numa tendência nostálgica de recuperação da memória glamorosa de Audrey Hepburn – que, em rigor, nunca se perdeu – nos nossos tempos de gourmet & trendy, na era vazia em que o lifestyle se tornou uma religião com milhões de crentes. Em 2015, Dotti e o irmão, Sean Hepburn Ferrer (filho do primeiro casamento de Audrey com o actor Mel Ferrer), cederam várias imagens da mãe para uma retrospectiva copiosa na National Portrait Gallery, “Audrey Hepburn: Portraits of An Icon”.
O olhar cândido da actriz aparece-nos por toda a parte: em capas de revista, álbuns de luxo, carteiras de senhora, magnetes para o frigorífico, tapetes para o rato informático, até em quadros do IKEA que colocamos nas salas de estar ou nos quartos de dormir, em adoração à deusa sublime.
“Audrey at Home” é uma comovente expressão de amor filial e, no fundo, uma obra de memórias de infância, com fotografias multicoloridas e lembranças de tardes felizes, passadas em Hollywood, Roma ou Gstaad. A obra, aliás, é dividida pelos lugares por onde Audrey deixou a sua marca de classe e distinção, sendo polvilhada por reproduções de bilhetinhos com o timbre do Hotel Pierre, em Nova Iorque, receitas do mítico Harry’s Bar em Veneza, ou cartas da Casa Branca assinadas por George Bush a agradecer o trabalho da actriz em prol da UNICEF e das crianças de todo o mundo. De permeio, receitas para humanos de alta sociedade mas também para os (vários) cães que rodeavam Audrey, filha da baronesa van Heemstra (Dotti inclui no livro uma receita de caril, feita por esta sua avó materna).
Alguns podem duvidar que Audrey cozinhasse. O facto é que, mesmo nos períodos difíceis, de maior solidão, a actriz nunca dispensou o auxílio de duas empregadas, um cozinheiro e um jardineiro-motorista… Com um cozinheiro em casa, para quê um livro de receitas? Puro equívoco. Como é sabido (e quem não saiba tem à disposição em português um belo livro, “Audrey Hepburn – A biografia”, de Donald Spoto, o conhecido narrador das vidas das estrelas de Hollywood), Audrey largou o cinema e os óscares para se dedicar por inteiro ao lar e à família, gozando as delícias da domesticidade.
Para espanto dos seus fiéis, e porventura das feministas, entregou-se com devoção ao sacerdócio do casamento e da maternidade, fracassando no primeiro, triunfando na segunda (como este livro de Dotti o comprova, de resto). Com a condessa Domenico Dotti, mãe do segundo marido, o psiquiatra e professor universitário Andrea Dotti, aprendeu segredos da cozinha napolitana mais elaborada, para palatos de sangue azul.
Audrey não era uma arrivista, longe disso. Nascera em Bruxelas em 1929, filha de mãe neerlandesa e pai inglês (que se tornaram seguidores do movimento pró-fascista britânico, liderado por Sir Oswald Mosley), tendo-se fixado em Londres no final de 1948. Os pais, que já iam ambos no segundo casamento, divorciaram-se em 1938, tinha ela nove anos, e a sombra dessa separação pesou, e muito, na sua desesperada tentativa de manter dois matrimónios impossíveis, o primeiro com Mel Ferrer (que nunca aceitou ser relegado para o papel secundário de príncipe consorte) e o segundo com Andrea Dotti (um militante acérrimo do adultério).
Um dos seus grandes confidentes, o costureiro Hubert de Givenchy, que assinara o vestido e noiva do seu segundo matrimónio, disse nunca a ter visto tão infeliz como quando soube que Andrea Dotti, um canastrão dez anos mais novo do que ela, a atraiçoava com numerosas amantes na casa de morada de família. Com cinco abortos espontâneos ao longo da sua vida, Audrey fumava desalmadamente, perdia peso a um ritmo alucinante, chegando a ter apenas 36 quilos nos tempos de maior melancolia.
No Outono de 1970, foi abordada por um representante das Nações Unidas para aparecer num programa televisivo de Natal, convite que acabou por lhe dar uma razão de viver, resgatando-a das garras da depressão profunda. A par disso, encontrara um novo e dedicado companheiro, o actor de televisão holandês Robert Wolders, que com ela viveu de 1980 até à morte da actriz, no início de 1993. O seu trabalho na UNICEF foi reconhecido mundialmente, sendo muito mais do que um passatempo humanitário a que, por vezes, as celebridades se dedicam para matar o tédio. A este propósito, há uma impressionante imagem de 1992, na Somália: Audrey Hepburn com uma criança negra ao colo; minúsculo, famélico, o bebé morrer-lhe-ia nos braços momentos depois de a fotografia ser tirada. Foi, segundo dizem, a viagem que mais lhe custou fazer, pelo que viu em África e pelo seu estado de saúde. Em Outubro de 1992, a diva foi internada no Cedars-Sinai Medical Center, em Los Angeles, onde lhe foi diagnosticado um tumor maligno. Regressou a La Paisible, o seu refúgio de sempre, tendo os Alpes como cenário.
Janeiro de 1993: Audrey Kathleen van Heemstra Ruston morre de cancro aos 63 anos, em Tolochenaz, na Suíça, sendo sepultada no cemitério local.
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