O fim da democracia
Democracia em crise ou crise das democracias? Sim, talvez não conheçam as democracias outro estado. Mas as notícias da sua morte são manifestamente exageradas.
Já passaram quase 30 anos desde que Francis Fukuyama publicou na revista The National Interest o famoso ensaio “The End of History?”. Nesse mesmo ano, o Muro de Berlim cedeu e passados três anos, quando o artigo se transformou em livro, foi o ponto de interrogação que caiu e o título ganhou ecos de profecia hegeliana: The End of History and the Last Man.
Hoje sabemos que a História não acabou, mas também sempre soubemos que não era bem isso que Fukuyama queria afirmar. De facto, a democracia liberal, como regime político realizável e atrativo, com o falhanço do fascismos e dos comunismos do século XX, deixou de ter competidores capazes de disputarem o mesmo campeonato. Não que todo o mundo tenha passado a viver em democracia ou que os diversos tipos de autoritarismo tivessem deixado de ter protagonistas e sequazes, mas nenhum se revelou suficientemente atrativo para rivalizar com a democracia como chamamento político à escala global.
Há poucos dias, a Freedom House publicou o seu relatório anual Freedom in the World 2018 com o inquietante subtítulo Democracy in Crisis. Os destaques não podiam ser mais inquietantes: pelo 12º ano consecutivo (desde 2006) regista-se um declínio nos índices da Freedom House que avaliam a liberdade no mundo e no mesmo intervalo de tempo são contabilizados 113 países onde os direitos políticos e as liberdades civis se deterioram e apenas 62 que registaram uma evolução positiva.
O alerta não é novo. Muitos dos que estudam a evolução da democracia o têm notado, como é o caso dos editores do Journal of Democracy, e autoridades nesta matéria, Larry Diamond e Marc Plattner, que já em 2015 publicaram um volume que reuniu ensaios de conceituados académicos precisamente com o título: Democracy in Decline? Se o diagnóstico não é novo, o facto de a tendência se manter ou agudizar não é a melhor notícia para a causa da democracia.
São vários os motivos e os planos em que uma propagada crise ou declínio da democracia têm sido abordados. Desde a dificuldade crónica de algumas partes significativas do planeta atingidas pela guerra e com estruturas de Estado débeis ou quase inexistentes em transitar para a democracia, passando pela afirmação e reforço de Estados autoritários e indo até à discussão da erosão da qualidade e de diversas ameaças nas mais vetustas democracias. Já Juan Linz e Alfred Stepan, na sua clássica análise dos problemas de transição e consolidação dos regimes democráticos, tinham notado que o Estado moderno é requisito da democracia moderna. Contudo, no século XXI persistem e prosperam Estados fortes e, até ver, bem-sucedidos, que estão longe das convenções das democracias inspiradas no modelo do liberalismo ocidental. A China é o exemplo mais saliente, mas a Rússia, na sua longa e grande tradição autocrática e imperial, persiste em desafiar a marcha da inevitabilidade democrática, sem esquecer as repúblicas e monarquias islâmicas e a relação difícil que a geografia do petróleo teima em estabelecer com o mapa dos direitos políticos e das liberdades civis.
Mas a discussão mais candente por estes dias na Europa e nos Estados Unidos talvez seja o da crise e das ameaças no território intelectual e político que corresponde ao berço das democracias modernas. Proliferam as análises à qualidade da democracia, à turbulência nos sistemas partidários e aos riscos de invasão e triunfo eleitoral dos mais diversos populismos. Tempos interessantes, poderia voltar a ironizar Eric Hobsbawm, mas, de facto, livros como The Retreat of Western Liberalism do jornalista do Financial Times Edward Luce desafiam-nos a encarar um cenário de grande exigência para as democracias liberais perante as grandes transformações económicas e sociais associadas ao desenvolvimento tecnológico e à globalização.
No final do seu livro, Edward Luce refere que Francis Fukuyama lhe disse, numa entrevista em janeiro de 2017, que face à velocidade das alterações e aos desafios que se colocam, que abandonou todos os seus projetos de investigação e que o único tópico em que consegue pensar é no futuro da democracia liberal. Temos razões para esperar que a reflexão de Fukuyama seja profícua, mas também para ter sérias dúvidas de que o possa levar a escrever um novo ensaio intitulado “O fim da democracia”.
Poder-se-ia brincar e dizer que é de elementar cautela não cometer o mesmo erro duas vezes. Mas, para além da ironia, existem fundados motivos para acreditarmos que tal não é verosímil. Apesar de todos os reptos que enfrenta, a democracia não é apenas “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras já experimentadas ao longo da história.” É também aquela em que a flexibilidade, a convivência de uma pluralidade de crenças e de soluções políticas concretas e a alteração pacífica dos governantes é inata à sua constituição, sendo por isso a forma de governo mais bem equipada para um mundo em premente mudança.
Democracia em crise ou crise das democracias? Sim, sim, talvez não conheçam as democracias outro estado. Mas as notícias da sua morte são manifestamente exageradas.
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