O salmão fumado e o bilhete de Centeno para ir ver o Benfica
Os códigos de conduta, sejam eles do Governo ou do Banco de Portugal, existem para serem cumpridos e devem prever sanções. Caso contrário, não passam de uma lista de supermercado.
Esta semana, foi noticiado pelo Correio da Manhã que os trabalhadores do Banco de Portugal rejeitaram e devolveram várias ofertas que receberam de pessoas ou empresas que, num alegado gesto de cortesia, queriam presentear os funcionários com os mais variados artigos, desde um salmão fumado, um bolo Panetone ou uma travessa de cerâmica Bordalo Pinheiro.
Pode parecer ridículo, e até deselegante para quem oferece, um funcionário ter de rejeitar um simples salmão. É até quase ofensivo para o Pai Natal alguém rejeitar um saboroso e inocente Panetone. Só que os códigos de conduta têm de servir para alguma coisa e têm de ser cumpridos à risca, mesmo correndo o risco de criar situações caricatas ou deselegantes.
A nossa história judicial e investigações como as da Face Oculta já nos ensinaram que de um salmão facilmente se passa para um robalo e daí para um envelope de dinheiro é um instante.
Isto tudo vem a propósito, ou do despropósito de Mário Centeno ter pedido bilhetes para ir ver o Benfica na bancada presidencial. É um pouco prematuro, até idiota, falar sobre a existência ou não do crime de “recebimento indevido de vantagem” ou especular sobre a proporcionalidade da investigação do Ministério Público. Isto porque não fazemos a mínima ideia do que a PGR anda a investigar.
Dito isto, não quer dizer que a Justiça seja o único fórum para se discutir o tema. O Governo, tal como o Banco de Portugal, aprovou um Código de Conduta depois das viagens de vários secretários de Estado deste Governo ao futebol. Prevê o tal Código de Conduta que os membros do Governo não possam aceitar “convites ou outros benefícios similares com um valor estimado superior a 150 euros”. Já depois do caso Galpgate e da aprovação do código de conduta, houve um adjunto do secretário de Estado das Comunidades que foi exonerado por ter violado este código, ao ter aceite uma viagem à China com a Huaweigate.
No caso de Mário Centeno e dos bilhetes do Benfica, o ministro das Finanças já veio dizer que houve um “cumprimento escrupuloso do Código de Conduta a que todos os membros estão obrigados”. O que não é escrupulosamente verdade. Para quem tiver dúvidas basta ler o artigo 10º do tal Código de Conduta do Governo. Nós já o fizemos aqui no ECO.
Dito isto, o todo-poderoso Mário Centeno, ministro e presidente do Eurogrupo, deve ser exonerado porque pediu um bilhete para ir ver o Benfica-Porto, tal como aconteceu com o desgraçado do Adjunto que foi à China? Não. Aqui também deve ser válido o princípio da proporcionalidade. Tal como o funcionário do Banco de Portugal teve de devolver o salmão fumado e a caixa de Panetone, também Mário Centeno deveria, nem que fosse num gesto simbólico, devolver o dinheiro do bilhete que não pagou. Dir-me-ão que os bilhetes para a bancada presidencial não são vendidos e como tal não se sabe o valor. Centeno, que conseguiu com o seu Excel fazer mil contas para cumprir o défice, também há de facilmente chegar à conclusão que o dito bilhete valerá mais do que os 150 euros previstos no Código de Conduta.
Fazer um Código de Conduta, como fez o Governo, sem prever sanções, — nem que seja uma simples reprimenda verbal ou obrigatoriedade de devolver o benefício recebido — abre portas a situações de injustiça, em que o peixe miúdo é apanhado na rede do Código e o peixe graúdo continua a nadar em águas, por vezes turvas.
Depois do salmão fumado e do peixe graúdo, também vale a pena fazer uma referência à peixaria que foram as jornadas parlamentares do PS em Coimbra, na semana passada, em que alguns deputados do partido que pensam pela própria cabeça — Sérgio Sousa Pinto, Isabel Moreira ou Ascenso Simões — discordaram da forma, da velocidade e do conteúdo da lei da transparência que os socialistas queriam aprovar à pressa no Parlamento.
Este pacote legislativo prevê por exemplo, a transposição para a lei do que já está previsto no tal Código de Conduta do Governo, prevendo-se que um deputado não possa aceitar prendas de valor superior a 150 euros.
O pacote da transparência prevê ainda alterações ao estatuto dos deputados e muda o regime de incompatibilidades. Prevê, por exemplo, que os deputados percam o mandato se falharem a entrega da declaração de rendimentos, trava ao máximo as compatibilidades dos deputados/advogados, defende um striptease quase total ao património, passivo e herança dos políticos, e ainda sugere a criação de uma Entidade para a Transparência em Funções Públicas, a funcionar junto do Tribunal Constitucional. Seria uma espécie de Gabinete de Conformidade que já existe no Banco de Portugal, o tal que mandou o funcionário devolver o salmão fumado.
Algumas destas regras podem fazer sentido, outras roçam o populismo. Não se pode cair no exagero, como disse e bem Sérgio Sousa Pinto, de criar uma classe de políticos, “espoliados de toda a liberdade económica e profissional”. Perdem a independência e são transformados em “sacerdotes, vestais”, “deputados servis” à ordem do diretório partido. Arriscar-nos-íamos a só ter na política aqueles que não têm mais para onde ir e, esses, às vezes são tentados a ir para onde não devem ir.
Mais do que entrar numa fúria legislativa que às vezes roça o populismo e a demagogia, seria importante que os titulares de cargos políticos e públicos cumprissem e fossem consequentes com as leis e os códigos de conduta que já existem. Devolver um salmão fumado à procedência pode até parecer uma atitude ridícula e mesquinha, mas é a única garantia moral que ainda nos permite distinguir um salmão fumado de um perigoso e corrupto robalo.
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