Talvez a ignorância nos traga a felicidade
O secretismo de dados que o Estado tem mas prefere guardar para si, apenas por preferir tratar os cidadãos como uma “super nanny”, não é nunca uma solução.
Paul Fishman é médico na cidade norte-americana de Wheat Ridge, no Estado do Colorado. Em 2015, este profissional receitou a 800 dos seus pacientes 28.685 medicamentos, no valor global de venda de 1,73 milhões de dólares. Quase metade (43%) dos medicamentos que receitou foram da classe dos opioides, acima da média de todos os seus colegas de especialidade do Colorado.
Estes dados são absolutamente irrelevantes para mim e, provavelmente, para 99% dos norte-americanos. Mas eles são públicos graças ao trabalho, iniciado há mais de uma década, do site jornalístico Pro Publica, um projecto sem fins lucrativos, financiado por fundações e particulares que se dedica a investigar temas relacionados com decisões e políticas públicas muitas vezes a partir de dados que estão na posse de entidades oficiais mas que não são tratados nem tornados públicos.
A base de dados da Pro Publica sobre a saúde permite analisar as práticas de cerca de 1,4 milhões de profissionais do sector. Lá ficamos a saber cada medicamento que cada um receita, mas também o que recebem de pagamentos ou patrocínios de empresas farmacêuticas. Com esta base de dados, cada utente pode, se quiser, perceber padrões de prescrição dos seus médicos – medicamentos de marca ou genéricos? – e todos podem tirar as conclusões que bem entendam sobre eventuais ligações entre recebimentos de farmacêuticas e remédios receitados.
O que a Pro Publica fez quando se meteu nesta “empreitada” foi exigir ao Estado informações que os organismos públicos tinham mas que não divulgavam nem trabalhavam de forma consistente. Este projecto é hoje um marco de serviço público de informação e é um caso de estudo global do chamado “jornalismo de dados” – tratamento de grandes quantidades de informação e bases de dados de forma sistemática para, a partir daí, tirar conclusões que sejam relevantes e de interesse público. A tal ponto que as autoridades de saúde norte-americanas já criaram a sua própria base de dados pública, em tudo semelhante à da Pro Publica.
Outro exemplo, entre os vários trabalhos que já valeram vários Prémios Pulitzer à Pro Publica, foi a análise dos despejos de casas feitos pelas autoridades na área de Nova Iorque, para concluir que não havia qualquer base legal para expulsar de suas casas muitas das vítimas e que estas pertenciam na sua quase totalidade a minorias que viviam em bairros pobres. Também aqui o trabalho foi feito a partir de dados que estão na posse do Estado, no caso mais de 500 processos arquivados nos tribunais.
Lembrei-me destes trabalhos a propósito da divulgação de mais uma série de rankings das escolas portuguesas e das críticas que, anualmente e nesta ocasião, se fazem à divulgação pública destes dados, a que este ano se juntou o próprio ministro da Educação.
Até posso entender que se desvalorizem estes dados e se defenda que eles pouco ou nada significam – o que, à partida, já é difícil. Mas que se considere que estaríamos todos melhor sem estes dados do que com eles tornados públicos já ultrapassa o meu entendimento, por muito boa vontade que tenha para perceber.
A divulgação pública das classificações médias dos alunos organizadas pelas escolas que frequentam foi uma das maiores vitórias da sociedade civil – comunicação social, académicos, universidades, especialistas, pais ou professores que o reclamavam – sobre o Estado, na tentativa deste impedir a divulgação de informação que recolhe com os nossos impostos e que é de interesse público.
Depois, na forma como a informação tem sido tratada e divulgada, poucos assuntos têm sido tratados com o rigor e o contexto deste. Os órgãos de comunicação social que se dedicaram desde o início a este projecto – o jornal Público foi, nesta matéria, pioneiro – estabeleceram parceiras com universidades e académicos para garantir o rigor dos modelos e critérios de tratamento dos dados, cuidaram da sua apresentação e sempre deram o contexto e fizeram as análises necessárias para que cada cidadão que os consulte saiba o que ali está.
Graças à evolução das ferramentas tecnológicas, hoje os dados são apresentados de forma a permitir todo o tipo de consultas por vários critérios: geográfico, escolas públicas ou privadas, número de alunos considerados em cada escola e disciplina, evolução ao longo dos anos, etc. etc.
Os críticos da divulgação destes rankings usam, por regra, dois argumentos para desconsiderarem o exercício: que não se podem comparar escolas públicas e privadas e que não se pode meter no mesmo “saco” escolas que têm contextos sócio-económicos diferentes.
Parece evidente que estes e outros contextos devem ser sempre tidos em conta quando se analisam os dados e não me parece que haja algum cidadão que tenha interesse na matéria a ponto de consultar as listas e não o saiba à partida. As pessoas não são indigentes mentais que têm que ser protegidas de informação sobre notas médias dos alunos. Não vá dar-se o caso, coitadas, de concluir que as diferenças que possam existir entre uma escola privada e uma pública têm apenas a ver com a qualidade dos professores ou dos métodos de ensino. Também pode ter a ver com isso. Mas não apenas com isso. Por exemplo, sabemos, à partida, que as escolas privadas têm uma possibilidade de escolha de alunos e professores que as públicas não têm e isso reflecte-se, claro, nos resultados.
Mas também é graças a estes rankings que ficamos a saber que há muitas escolas públicas que possibilitam melhores resultados médios do que algumas privadas que lhe são vizinhas. Ou que alguns estabelecimentos privados inflacionam as classificações internas, ao ponto de estas apresentarem um grande desfasamento favorável quando comparadas com as notas dos exames nacionais dos mesmos alunos. E estes dados também nos fazem pensar que a qualidade do ensino ou os níveis de exigência e de métodos de trabalho de muitas unidades privadas podem até ser inferiores a algumas escolas públicas.
A aversão de muita gente à informação, ao diagnóstico, às análises ou às avaliações em matérias tão importantes e de interesse geral como a educação é um sinal preocupante.
Preferem um país onde não sabemos nunca onde estamos, o que fazemos melhor do que uns e pior do que outros? Ou onde duas escolas próximas e em contextos muito semelhantes não podem – e muito menos devem – comparar os seus resultados para tentar perceber quais são as práticas que garantem melhores resultados aos alunos? Pior, é preferível que essa informação seja apenas conhecida por meia dúzia de decisores e não partilhada com pais, alunos e com toda a comunidade?
O obscurantismo do conhecimento de maiores e menores sucessos pode servir conceitos ideológicos mas não serve, certamente, os pais e encarregados de educação que querem e têm direito a toda a informação disponível para com ela tomarem as decisões que bem entendam dentro das regras impostas pelo Estado.
Estes rankings não são dados definitivos, inquestionáveis e que permitem conclusões finais sobre o ensino e as escolas. Mas são uma peça essencial do puzzle de dados que devem ser de acesso público.
É muito melhor tê-los, com todas as circunstâncias que os podem explicar, do que não tê-los. O seu desconhecimento não é, certamente, uma melhor opção. O secretismo de dados que o Estado tem, mas prefere guardar para si, apenas por preferir tratar os cidadãos como uma “super nanny”, não é nunca uma solução.
Até na sensível área da saúde já se percebeu isso, com a divulgação da avaliação regular a estabelecimentos de saúde públicos e privados feita pela Entidade Reguladora do sector.
Se aplicássemos as reservas que o contexto sócio-económico provoca a todos os dados, isso inviabilizaria uma grande parte das estatísticas que todos os dias são publicados, nacionais ou internacionais.
Divulgar taxas de desemprego regionais? Como, se o contexto sócio-económico do Norte não tem nada a ver com o dos Açores? Rendimentos e qualidade de vida? Não vamos colocar na mesma tabela os dados de Oeiras e de Oleiros, pois não?
No limite, se quisermos retirar de todas as estatísticas o efeito do contexto sócio-económico deixaríamos de ter contextos sócio-económicos diversos. Talvez seja esta, afinal, a solução para a nossa felicidade colectiva: a ignorância sobre a realidade.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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