A corrupção e outras guerras

José Miguel Júdice analisa, no Jornal das 8 da TVI, o estado da Justiça em Portugal, revela-se preocupado e deixa conselhos.

A corrupção é o maior dos crimes, porque arrasta muitos outros. Disse-o vezes sem conta, que me lembre pelo menos desde os anos 80 em debates na Alta Autoridade contra a Corrupção a convite do Coronel Costa Brás. Apesar disso, reconheço que os países sobrevivem a políticos, empresários e sindicalistas corruptos. O que muda o paradigma dos regimes políticos é se os magistrados judiciais e os investigadores e acusadores públicos se tornarem corruptos. Foi o que aconteceu nos EUA no tempo da Lei Seca. Esse é o maior risco para as sociedades abertas como a portuguesa que levaram a liberdade e a justiça social a patamares nunca alcançados na História da Humanidade

Os Juízes são a última muralha que não pode cair na luta constante pelo Estado de Direito. Se o vírus aí se instalar as muralhas começam a tombar. E quem investiga crimes tem enormes oportunidades para os cometer. Um Ministério Público infiltrado por criminosos é dar o ouro aos bandidos. Por isso, estou muito preocupado.

  1. Em primeiro lugar, pela confissão do procurador Figueira de que praticou graves crimes, que quando relativos a empregados públicos dificilmente se não inserem no paradigma da corrupção.
  2. Em segundo lugar pela alegação de indícios de corrupção de dois desembargadores, um deles já graduado para subir ao STJ.

Antes do mais, quero fazer com alguma solenidade uma declaração: ando há mais de 40 anos de toga pelos tribunais, perdi e ganhei casos, participei em milhares de processos desde pequenas cobranças a ações cíveis de muitas dezenas de milhões de euros, desde a pequena criminalidade correcional (como se dizia) a complexos processos criminais, desde os então chamados recursos contenciosos de anulação de decisões administrativas, a processos contraordenacionais, a impugnações tributárias, a litígios laborais, a ações de divórcio e de regulação de poder paternal. Servi o meu país como membro do Conselho Superior da Magistratura durante 4 anos e a minha profissão como Bastonário dos Advogados durante 3 anos.

Acho que, por isso, posso afirmar com conhecimento de causa que as nossas magistraturas são decentes, têm padrões éticos elevados; numa palavra, não são corruptas. E mais, em toda a minha longa vida profissional só em dois casos (um numa Relação há alguns anos e outro no STJ há muitos anos) tive uma dúvida, mas não era suficiente para que participasse ao MP, o que faria sem uma hesitação se a convicção fosse mais sólida. Numa longa vida, afirmar isso publicamente é motivo de tranquilidade, dirão os que me vêm e ouvem lá em casa.

É verdade tudo isso; mas, ainda assim, estou muito preocupado. Porquê?

Quanto aos Juízes…

Em primeiro lugar, pelo que chamo o paradigma da intoxicação por gás. Ela pode ser lenta e gradual, quase inodora e impercetível, mas quando se descobre já não conseguimos fugir. Se o vício da corrupção se instala pode acontecer algo idêntico

Em segundo lugar, por causa do que chamo dumping ético. Quando numa sociedade ou instituição uma grave doença social ultrapassa um certo limite (que não sei definir, mas existe), a ilegalidade e o crime tornam-se autossustentados e autofágicos dos que lhes resistem. Por exemplo, diz-se que os maçons são fortes nas magistraturas e se protegem como se de um lobby se tratasse. Não sei se é assim; mas não queiram imaginar sequer o que seria um lobby de criminosos na Judicatura e no MP.

Em terceiro lugar, e quanto aos Juízes, nos tribunais superiores é virtualmente impossível que um juiz corrompido e corruptor possa levar água ao seu moinho (ou melhor, o dinheiro ao seu bolso), pois as decisões em que a corrupção poderia germinar exigem dois ou até três magistrados nas Relações e bem mais (toda uma secção, de algum modo) no STJ.

Mas não acredito na tese de que Rui Rangel (a ser verdade o que dizem, o que tem de ser provado) andava há anos a vender gato por lebre aos que o corromperiam. Tanta estupidez de quem vive do crime não é ponderável.

Então, o seu sucesso só poderia existir com batota na distribuição dos processos que vão chegando (o que dizem que ocorria) e com alguma rede de contactos internos, de cúmplices; ou, pura e simplesmente, devido à inércia de juízes que assinariam de cruz sem ler os acórdãos (o que seria muito grave, porque a corrupção em recursos judiciais tem tudo para se revelar evidente à simples leitura). Tudo isso é causa de preocupações.

E, em quarto lugar, e sobretudo estou muito preocupado por algo que se pode vir a assemelhar a uma epidemia. Hoje, por esse país fora, pessoas e empresas que não tiveram sucesso em processos judiciais estarão a sussurrar que se calhar perderam injustamente. E se isso se tornar endémico, será devastador para o Estado de Direito.

… e quanto ao Ministério Público?

Em primeiro lugar, existem casos em que o MP e/ou a PJ colaboraram com jornais passando informações em violação do segredo de justiça, e por isso cometendo-se crimes. Ao contrário de José Manuel Fernandes, isso preocupa-me. Li estupefacto que a revista “Sábado” cobriu em exclusivo os últimos 5 dias antes de as buscas se iniciarem, afinal ‘embedded’ nas equipas de investigação. Quem começa pela pequena criminalidade, pode deslizar com naturalidade para a grande criminalidade. E violar segredo de justiça é crime.

Em segundo lugar, pela preocupação que tenho há muitos anos por causa do modelo hierárquico existente, que não funciona. Eu explico: Em Portugal, o MP ter poderes muito acima da norma, para os quais a única proteção dos cidadãos é que se cumpra o modelo constitucional que lhe atribui autonomia, mas exige uma clara organização hierárquica, na qual cada concreto procurador está subordinado a um magistrado mais experiente.

Quando isso falha (e falha muito e como regra, diria eu), cada procurador fica com poderes excessivos e incontrolados. O que se passou com o caso das espetaculares buscas ao gabinete do ministro das Finanças é o exemplo radical oposto ao do procurador Figueira. Em ambos os casos, alguém em roda livre faz o que lhe dá na realíssima gana; e que se lixem as consequências.

No MP reside, afinal, o poder de investigar ou não, o de conseguir a autorização de escutas ou de não o pedir, de incluir no pedido outros telefones, de acusar ou não acusar, de poupar criminosos ou fazer a vida num inferno a inocentes. E tudo isto com a agravante do famoso Carlos Alexandre (que manifestamente não é um Juiz das Liberdades) estar psico-estrategicamente captado pelo MP.

Esta total e anárquica autonomia do MP facilita excessos de zelo e o seu oposto, a tentação financeira. Ao contrário do que por vezes as profissões organizadas pensam, não há banhos lustrais que tornem mágica ou sacralmente sérios todos os que a integram. Por todo o lado, há sempre santos e pecadores.

Que fazer então? Muita coisa. Alguns exemplos:

  1. Aplicar aos magistrados o regime da declaração de rendimentos e de interesses dos decisores políticos.
  2. Reforçar a colegialidade das decisões dos magistrados, sobretudo quando elas são finais.
  3. Criar, no respeito da independência, mecanismos de controlo de qualidade das decisões judiciais, com especial atenção a situações “outlier”, o que como subproduto dificultará situações desviantes.
  4. Melhorar as condições financeiras da magistratura judicial e a sua dignidade social.
  5. Reforçar fortemente o cumprimento constitucional do princípio do controlo hierárquico do MP para evitar ou reduzir comportamentos desviantes em relação à norma.
  6. Implementar sistemas de fiscalização que se não esgotem nos processos de avaliação para efeitos de carreira.
  7. Reforçar a coesão das profissões jurídicas no esforço de proteção da razão da sua existência.

A próxima guerra

Uma última nota serve para, apesar de tudo, contextualizar o que acabei de referir, pois há coisas ainda mais graves.

O famoso “The Economist” fazia esta semana capa com letras garrafais: “The Next War”, a próxima guerra. E, no editorial, dedicava ao tema 16 páginas, escrevendo-se que “the pressing danger is of a war on the Korean peninsula, perhaps this year”. A previsão é, portanto, que será possível que ocorra uma guerra nuclear neste ano ou no próximo, centrada na Coreia da Norte, mas não só aí.

Para quem me vem acompanhando neste programa, sabe que há um ano venho dizendo isso mesmo e explicando as razões. Voltarei ao tema brevemente

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