Em memória de um homem extraordinário*
Belmiro de Azevedo foi um homem cuja superioridade e critério geravam uma espécie de intranquilidade criativa, a que eu definitivamente não escapei. Teremos estado realmente à sua altura?
Já o disse a jornalistas no próprio dia da sua morte: não me peçam para falar com distância da vida de um homem extraordinário, de quem fui muito amigo e que admirei profundamente. Passou pouco tempo ainda. Ninguém estranhará, por isso, que, no meu espírito, as recordações pessoais avultem sobre a contemplação da obra imensa, como empresário, como inspirador de outros empresários e gestores, como criador de uma particularíssima cultura de empresa, ou simplesmente como cidadão.
Com efeito, em todas essas dimensões o Eng.º Belmiro de Azevedo foi verdadeiramente esplêndido, se não mesmo único, mas essa obra está à vista de todos, qualquer um a pode ajuizar por si, e sobre ela ter palavras muito próximas das que eu próprio utilizaria.
Prefiro claramente, por agora, falar do que ele foi, em lugar de falar sobre o que ele fez. Conheci-o de perto durante longos anos, trabalhei muitas vezes em lugares e em momentos em que lhe estava bem próximo. Creio que posso dizer que éramos realmente amigos: do seu lado, uma amizade cheia de condescendência e de contemporização; do meu lado, uma amizade quase veneradora, perante um homem cujos instinto e inteligência, a par com o fino humor e a certeira ironia, tornaram muitas vezes intimidantes as conversas que tivemos, de que felizmente sobraram ditos e pequenas histórias que ainda hoje são lembrados no círculo dos seus próximos.
Sou testemunha, no entanto, de que procurou sempre fugir ao culto da personalidade: sentia que queriam por vezes elogiar-lhe a carreira como se ela já estivesse completa, quando afinal no seu cérbero ainda fervilhavam, até à última hora, inúmeros projectos e ideias para realizar no dia seguinte. Ele disse, aliás, de si próprio, um dia: “continuarei a ser como sou, enquanto puder estar”.
Diria eu até que evitava as honras públicas. Não pensava ele certamente que as não merecia, e não acho que se caracterizasse pela apagada modéstia das figuras vulgares ou dos santos, como cheguei a sugerir um dia, publicamente e em frente dele…Tinha apenas, talvez, pouca confiança na sinceridade e na constância dos sentimentos dos poderosos, detestava hipocrisias…
Mas as homenagens que lhe virão a fazer, seguramente, não podem ser mais justificadas, olhando para os tempos que vivemos no Mundo e no nosso Portugal. Quando tantos vêem abalada a sua confiança no capitalismo global, nos capitalistas e nas suas dinastias, quando a empresa moderna é tantas vezes olhada como uma alegoria da crueldade dos homens e da sua ganância destemperada, quando alguns falam até de uma nova utopia – a “economia da compaixão” -, o Eng. Belmiro permaneceu toda a vida, afinal, como um símbolo dos valores empresariais autênticos. Sim, claro que é também um símbolo do sucesso, da eficácia e do pragmatismo; mas sobretudo, para mim, um símbolo da frugalidade, da ética empresarial, do respeito pelos trabalhadores, pelos accionistas, pela lei e pela comunidade.
O Eng. Belmiro de Azevedo esperava dos governantes somente aquilo que esperava de todos os homens comuns: simplesmente que cada um cumprisse honradamente o seu dever. Mas a sua repulsa pela nossa atávica cultura de centralismo e de corte chegava a parecer quase agressiva.
Como também já afirmei numa cerimónia solene, a sua lendária independência é muito mais uma consequência destes valores do que um novo valor autónomo. Em Portugal, há realmente empresários que serviram todos os poderes; há também outros que se serviram de todos os poderes. Mas da Sonae dir-se-á sempre que, por sua influência, nunca suplicou, e também nunca agradeceu.
O Eng. Belmiro de Azevedo esperava dos governantes somente aquilo que esperava de todos os homens comuns: simplesmente que cada um cumprisse honradamente o seu dever. Mas a sua repulsa pela nossa atávica cultura de centralismo e de corte chegava a parecer quase agressiva, e em muitos momentos eu – certamente mais maleável, com um feitio mais compromissório… – cheguei a questioná-lo sobre se ela não teria implícito um custo demasiadamente elevado. Hoje posso dizer que já vivi o suficiente para perceber que um tal custo esteve sempre incorporado na sua acção, e não havia expectativa de melhoria de rácios económicos que o fizesse recuar neste particular domínio.
Havia nessa reconhecida independência uma indisfarçável marca nortenha. Não o lembro para acentuar um ponto de vista divisor ou de bairrista, mas apenas para reconhecer que existe realmente uma riquíssima diversidade nos caracteres portugueses: ele era demasiado experiente para não depender dos outros, e suficientemente sábio para desconfiar da volubilidade da política. Absorvido pela sustentabilidade da empresa – a que nunca chamou “sua”, e que às vezes parecia querer preservar até à eternidade -, tinha pouco tempo a perder com a típica lógica de curto prazo do poder. Era seguramente mais impressionável pelas pessoas e pelas ideias do que pelas cores ou bandeiras: os defeitos da democracia com que convivia afiguravam-se-lhe apenas como mais um dado – a que estava atento, que gostaria de ajudar a corrigir, mas que, em última análise, constituíam realmente apenas mais um dado.
Depois, o Eng. Belmiro nunca foi um solitário, colocado no pedestal a que teria indiscutivelmente direito, muito mais do que outros, que o ganharam por muito menos. No plano pessoal, sempre foi um homem em comunhão com a Família; e, em particular, a sua Mulher Margarida nunca se afastou um momento dos seus êxitos ou dos seus infortúnios, nem ele nunca quis prescindir dos seus conselhos e da sua sabedoria afável. No plano profissional, por outro lado, a sua maior realização foi certamente a criação de uma cultura e de um espírito de grupo, onde a marca do colectivo se impunha à da realização individual – uma cultura que perdurará muito tempo para além da sua vida, e que, valorizando sem dúvida o mérito individual, o afere sempre em função do resultado colectivo da equipa, do departamento ou da companhia.
Desde o momento em que os nossos percursos se cruzaram, a sua exigência, o seu rigor, a sua argúcia intelectual, a sua criatividade, a sua permanente vontade de desafiar as ideias feitas contribuíram certamente para que eu sentisse sempre a necessidade de me superar. Mas o que me marcou mais profundamente foi sobretudo o seu obsessivo culto da verdade e da integridade, a sua impaciência com as trivialidades e com a mediocridade.
Foi, aliás – se não ofendo a sua memória -, um homem de excessos nas relações humanas: caloroso, fiel e condescendente na amizade; impiedoso e frio com a falsidade, a duplicidade ou a traição. Por tudo isto, eu diria que Belmiro de Azevedo foi verdadeiramente um homem cuja superioridade e critério geravam no ambiente profissional e pessoal uma espécie de intranquilidade criativa, a que eu definitivamente não escapei, e que ainda hoje me assola: teremos estado realmente à sua altura?
* Belmiro de Azevedo faria 80 anos no dia 17 de fevereiro. Este texto integra uma revista especial do ECO que está nas bancas e que é um tributo ao empresário.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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