Os serviços públicos, versão 2018
O cidadão tem de ser exigente na relação com a administração pública. É para isso que o cidadão é contribuinte: para que os serviços públicos lhe cheguem com eficiência e com qualidade.
Esta terça-feira, a propósito do regime dos trabalhadores do serviço doméstico, tive de telefonar para a linha de apoio da Segurança Social. Em causa estava a indisponibilidade operacional do pagamento que habitualmente faço através de “homebanking” e que na rede de ATM também estava em baixo. A situação já se prolongava há vários dias e tardava em ser rectificada. Assim, ao telefonar para a linha de apoio, questionei o funcionário sobre a falta de meio de pagamento, ao que este prontamente me confirmou a existência de um problema de comunicação da Segurança Social com a rede bancária, mas para o qual não existia prazo de resolução à vista. Que fazer então com o pagamento pendente? Resposta do funcionário: terá de se dirigir, o senhor ou alguém por si, a um balcão da Segurança Social e realizar o pagamento na tesouraria.
Reagi energicamente, afirmando que aquilo era coisa do século passado, que não podia perder o dia para ir fazer fila para a Segurança Social, e desliguei – não sem antes agradecer a atenção do funcionário que, coitado, me transmitiu de modo constrangido aquilo que outro alguém acima dele lhe mandou dizer. Porém, como contribuinte e utilizador daquele serviço público, senti-me francamente defraudado porque, entre os três meios possíveis (“homebanking”, ATM ou o balcão físico da Segurança Social), o único que estaria disponível até à data limite de pagamento era aquele sem qualidade do século XXI.
A chamada ficou gravada e talvez alguém a tenha ouvido. Porque eis que, “in extremis”, ao final da tarde (na hora h do dia d), o sistema ATM voltaria a ficar operacional. Ainda assim, não deixei de me interrogar: e se eu tivesse seguido a recomendação do funcionário? Quem me compensaria pelo dia perdido na Segurança Social?
O que relatei antes não é o primeiro episódio tumultuoso que experiencio junto da Segurança Social. Recordo-me, por exemplo, de uma vez ter acompanhado a minha mulher, que então se encontrava em avançado estado de gravidez, e de ter demorado duas horas a ser atendido numa fila de atendimento dito prioritário. Pode até ter sido azar e caso fortuito, mas a verdade é que fiquei com uma péssima impressão do serviço.
Noutra ocasião, descobri que na Segurança Social as unidades que lidam com trabalhadores dependentes e com trabalhadores independentes não comunicam entre si. Pelo contrário, trabalham como silos autónomos. Daqui decorre que, na prática, é ao trabalhador, ora trabalhador dependente, ora independente, ora dependente e independente, que cabe a solicitação de comunicação entre os serviços sempre que alguma coisa não bate certo. É facto que a Segurança Social directa veio agilizar alguns processos, melhorando significativamente a qualidade de serviço, mas infelizmente nem tudo pode ainda ser feito online.
De qualquer forma, a questão principal, e é aqui que quero chegar, é que na relação com a administração pública o cidadão tem de ser exigente. É para isso que o cidadão é contribuinte: para que os serviços públicos lhe cheguem com eficiência e com qualidade. Recordando uma crónica que outro Arroja, Pedro Arroja, publicou há quase trinta anos, já não deveríamos estar no tempo em que “Num serviço público, o público é uma maçada” (“Serviços públicos”, Vida Económica, 1990). Todavia, trinta anos depois, ainda ficamos na dúvida.
A Segurança Social está, apesar de tudo, melhor. A digitalização, como disse antes, melhorou a qualidade de serviço. O mesmo se não pode afirmar da justiça. Neste domínio, o avanço parece-me nulo ou até mesmo negativo. Conforme referi há semanas, numa outra crónica que aqui assinei sob o título de “Isonomia e liberdade”, familiar minha colocou uma intimação contra o Estado português junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa vai para dois anos e dois meses.
Ora, uma intimação deveria representar um processo célere e urgente de protecção de direitos, liberdades e garantias. Mas isso há de ser noutro país que não Portugal. Por cá, ela é como se não existisse. Tudo é opaco. Não se conhece o estado dos processos. Não há junto de quem se possa protestar. Não resta senão aguardar, pois o que não tem remédio remediado está.
No caso dos tribunais administrativos, significa esperar dois anos e meio, em média, por uma decisão de primeira instância. Naturalmente, tudo isto é infame. E, no entanto, andamos nisto há anos. Parte do problema reside nas opções políticas dos governos: o Orçamento do Estado para 2018 dedica aos tribunais (sistema judiciário) apenas 486,4 milhões de euros (p.112 do OE2018), um valor que não chega sequer a 0,6% da despesa pública total e que, segundo o Eurostat, está abaixo da média europeia (0,7%) e abaixo dos valores registados noutros países como a Alemanha ou o Reino Unido (0,9% da despesa pública total, em ambos os casos) onde a justiça funciona como deve ser.
Quanto à outra parte do problema, ela reside no facto de o sector viver fechado sobre si mesmo, num clima fomentado pelas corporações que nele coabitam e que insistem em tratar os seus concidadãos como leigos – começando na forma como redigem e terminando na desresponsabilização que promovem. Sem surpresa, não há digitalização na justiça. Porque não há recursos para fazer o investimento e porque a abertura trazida pela digitalização também não interessaria aos actores do sistema.
Por fim, gostaria de referir a saúde, onde o problema é triplo: ele é falta de recursos, ele é subjugação aos interesses da corporação maior, e ele é também demográfico. Vamos por partes.
Primeiro, quanto à falta de recursos, chamo a atenção novamente para as opções políticas dos governos: o OE2018 concede à saúde uma despesa efectiva consolidada de 10.196,8 milhões de euros (p.144), ou seja, 11,5% da despesa pública total. Este valor compara mal com a média da OCDE, que é de 15%, e compara muito mal com outros países europeus como, por exemplo, a Alemanha que, exibindo uma estrutura demográfica e uma despesa pública total (em percentagem do PIB) semelhantes à nossa, dedica à saúde mais de 20% da sua despesa pública total. Sem surpresa, o resultado na saúde é o miserável Estado caloteiro que temos em Portugal.
Segundo, quanto aos lobbies do sector, temos à cabeça a Ordem dos Médicos (OM). Esta corporação é em larga medida a entidade responsável pela falta de médicos em Portugal. Ao longo dos anos, conseguiu sempre vedar a oferta do curso de medicina no ensino superior privado, sendo igualmente conhecida a sua ambição de reduzir o “numerus clausus” dos cursos existentes nas universidades públicas. Ao mesmo tempo, é também a OM que “de facto” controla a formação de médicos especialistas, porquanto é ao Conselho Nacional do Internato Médico (um órgão da OM) que cabe a determinação das idoneidades formativas dos hospitais, o que depois determina o número de vagas para especialistas que o Ministério da Saúde (através da ACSS) abre a concurso anualmente. O poder da OM é tal que ela mesma é a fonte primária de organismos internacionais como a OCDE. A mesma OCDE que considera os dados da OM, referentes ao número de médicos em exercício em Portugal, sobrestimados em 30%…!
Terceiro, quanto à demografia, como bem sabemos, ela é péssima em Portugal. Nas próximas décadas, a população portuguesa irá diminuir e envelhecer acentuadamente. Assim, o crescimento da procura por serviços de saúde obrigará a uma nova opção política, designadamente, uma dramática reformulação de sistemas centralizados, corporativos e estatizados como o nosso. Na saúde e em muitos outros serviços públicos também. Mudará o financiamento e, sobretudo, mudará a forma de prestação dos serviços públicos.
Nota: Ricardo Arroja escreve de acordo com a antiga ortografia
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