Mais dinheiro para o teatro e para Lucrécia Bórgia
A discussão a que estamos a assistir sobre o financiamento da Cultura e do Teatro faz lembrar uma outra, tida em 1866, e contada por Camilo Castelo Branco.
“A Queda dum Anjo” de Camilo Castelo Branco conta a história de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, um deputado da província que chegou à capital para ser deputado no Parlamento. Um dia, em Lisboa, Calisto foi à ópera ver Lucrécia Bórgia e ficou chocado com o espetáculo que qualificou de tripúdio. E mais chocado ficou quando descobriu que o Estado subsidiava o Teatro de S. Carlos com vinte contos de réis anuais.
No dia seguinte, quando chegou ao Parlamento, estava um deputado do Porto a discursar e a reclamar mais um subsídio para o lírico Teatro de S. João. Foi então que Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda resolveu pedir a palavra para fazer um daqueles discursos, cheios de arrebiques de retórica, para explicar a sua tese de que o Teatro não deveria ter dinheiros públicos. Este é um excerto da intervenção de Calisto:
“Eu sou de um país, Sr. presidente, em que se pede ao povo o subsídio literário para pagar com ele as tramoias da Lucrécia Bórgia. Eu sou de um país pobríssimo em que a vaia da Nação exangue sofre cada ano a sangria de algumas dúzias de contos para sustentar comediantes, farsistas, funâmbulos e dançarinas impudicas!”
Vamos dar um salto de 150 anos
Esta semana, ao ouvir Rui Moreira a pedir mais dinheiro para os teatros do Porto, ao ouvir os partidos a pedirem que o ministro da Cultura vá com urgência ao Parlamento e ao ouvir a pateada dos atores contra aquilo que dizem ser o fracasso da política cultural do Governo, vem logo à memória esse romance satírico de Camilo.
A polémica desta semana sobre o financiamento da cultura começa talvez com um problema de gestão de expectativas. Tal como os médicos, professores, enfermeiros, trabalhadores do metro e comboios, e os restantes funcionários públicos, também os atores e agentes culturais “compraram” o discurso do virar da página da austeridade.
Há quase quatro anos, o candidato do PS a primeiro-ministro, António Costa, recebia um apoio de peso da nata da cultura em Portugal e fazia duas promessas: um ministério próprio e uma nova visão para a Cultura. Para os atores, músicos e companhia, “uma nova visão para a cultura” não era um problema de dioptrias, mas sim de mais dinheiro.
António Costa, agora primeiro-ministro, até cumpriu. Se no ciclo anterior 2013/2018 o Estado deu 45,6 milhões de euros às Artes, agora este novo Programa de Apoio Sustentado para o período de 2019/2021 aumentou a verba em 59% para 72,5 milhões de euros. Então como é que se explica, como escreveu hoje o Público, que “nem os titulares da Cultura nos anos da troika terão gerado uma tão unânime contestação do setor como a dupla Castro Mendes/Miguel Honrado”?
A gestão de expectativas é uma das respostas possíveis, mas não é a única. O Governo assumiu desde a primeira hora um discurso ambíguo, politicamente fraco, disposto a ceder em tudo e mais alguma coisa e os atores perceberam e resolveram abrir o caderno de encargos: já não se trata apenas de teatros que ficaram de fora do Programa de Apoio Sustentado, mas resolveram repescar velhas revindicações do setor, como a clássica do 1% do PIB para a Cultura.
Atirar dinheiro para a cultura
A primeira resposta do Governo à polémica foi a mais disparatada de todas; foi o clássico ‘atirar dinheiro para cima do problema’. Ao primeiro ator ou músico que engrossou a voz, António Costa e Luís Filipe Castro Mendes resolveram passar mais um cheque de dois milhões de euros, ainda antes sequer de perceber para que serve este dinheiro e que problema irá resolver. É a mesma coisa que se passou na Saúde: o Governo primeiro atira 500 milhões de euros extra para os hospitais e só depois é que cria uma Estrutura de Missão para tentar estudar porque é que teve de gastar esses 500 milhões.
Como dizia, e bem, Rui Moreira, “não basta despejar dinheiro”. Depois do ‘atirar dinheiro para cima do problema’, Luís Filipe Castro Mendes fez uma nova fuga para a frente e admite agora repensar o modelo. Sendo verdade que há falhas que precisam ser corrigidas neste novo modelo — atrasos e uma concorrência, talvez desleal, por parte de projetos municipais disfarçados de companhias independentes — o modelo da Direção-Geral das Artes (DGArtes) é assente numa fórmula matemática que, aparentemente, é justa e faz todo o sentido, mesmo para quem não saiba distinguir um Tchaikovsky de um Vivaldi.
O a) é o Plano de atividades (que avalia a qualidade artística e a relevância cultural do projeto); o b) é a Entidade e Equipa (que valoriza, por exemplo, o historial); o c) é a Repercussão Social (que mede o alcance, a diversidade de públicos-alvo e condições de acessibilidade); o d) é o Projeto de Gestão (tem em conta a coerência do orçamento face à dimensão do projeto e os recursos humanos e materiais necessários); e, finalmente, o e) é a Correspondência aos Objetivos.
Seja esta fórmula, seja outra, há uma verdade que a matemática não vai mudar: o dinheiro não vai chegar para todos, como aliás acontece em todos os outros setores de atividade da sociedade. Há perguntas que o Governo terá de responder com clareza, mesmo correndo o risco de ser vaiado pelo setor: um aumento de 59% nas verbas para as Artes é suficiente ou o valor de base é demasiado baixo? Os projetos que não foram considerados elegíveis pelo júri merecem ter apoios? Os que foram considerados elegíveis mas ficaram no final da hierarquia merecem dinheiros públicos? Todos os projetos que concorreram devem ter dinheiro, até ao infinito? Se há projetos novos que mereceram apoios (48), não é natural que alguns mais antigos (26) o possam perder se não forem tão competitivos?
Claro que custa ver as Artes com pouco dinheiro, como custa ver os carrilhões do Palácio Nacional de Mafra a caírem aos pedaços. E custa ver cativações como aconteceram num passado recente em áreas como a Saúde ou a Administração Interna. Mas nesta discussão das artes tem de haver um ponto intermédio entre a visão anacrónica e bolorenta de Calisto sobre o financiamento público aos teatros e a do deputado do Porto que não parava de pedinchar subsídios para o teatro lírico.
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