Os berros e a tolerância

José Miguel Júdice critica "a hipocrisia e indiferença dos portugueses às violações éticas e ao desrespeito da lei". E cita os casos dos deputados, de Manuel Pinho e os vencimentos nos gabinetes.

O que haverá em comum entre as viagens dos deputados das ilhas, as notícias sobre pagamentos do BES a Manuel Pinho, o anunciado fim da dedução de 5% do vencimento dos membros dos gabinetes políticos (presidência da República, governo, autarquias) e a transmissão pela SIC de vídeos dos interrogatório de arguidos no Processo Marquês?

Em minha opinião, em comum existe a enorme hipocrisia e indiferença dos portugueses às violações éticas e ao desrespeito da lei, que se mascara com reações intensas e passageiras de generalização, afinal desculpabilizadora, o que polui o debate político, infeta a vida social e potencia abusos.

As viagens dos deputados

Reconheço que sou muito sensível a pessoas que, embora discordem, aceitam sem agredir as críticas – tantas vezes duras – que entendo dever fazer. Há uma semana, critiquei aqui o que descobri ser prática corrente e talvez legal, mas que considero inaceitável: Os deputados beneficiarem de pagamento de bilhetes de avião pelo Estado, como os outros habitantes da Madeira e dos Açores, e, além disso, de um subsídio da Assembleia da República que se destina precisamente a suportar tais custos.

Carlos César obteve o meu mail por amigo comum e com grande serenidade e delicadeza escreveu-me a defender a sua posição. Impressionou-me favoravelmente com essa atitude, mas ainda me impressionou mais a demonstração que me fez de que o abono mensal pode ser insuficiente para pagar as viagens normais dos deputados.

O que isto demonstra é a hipocrisia reinante em Portugal em relação aos políticos. Como povo, preferimos tolerar abusos dos políticos (que até nos dão uma sensação de boa consciência) em vez de assumirmos que devem ser mais bem pagos do que são atualmente. E os políticos preferem os subterfúgios e as habilidades ao risco – pois nos conhecem – de assumir com coragem que devem ser melhor pagos e legislar nesse sentido.

O que isto tem grave é bem pior (embora isso seja gravíssimo) do que a inevitável redução do nível da classe política que advém de pagamento miserável, pois os tempos são de realismo e qualquer político minimamente qualificado ganharia muito mais na vida privada. O pior de tudo isto é a tendência que insidiosamente se instala na classe política para recusar a transparência. E a tolerância que se espalha entre os portugueses para habilidades, pagamentos laterais, subsídios que são apenas uma forma de vencimento mascarado e que provavelmente em muitos casos nem sequer são considerados remuneração para efeitos fiscais.

Os pagamentos pelo BES ao ministro Manuel Pinho

Conheço bem Manuel Pinho e acho que foi um bom ministro, entre outras coisas por ter sido capaz de resolver assuntos que apodreciam pois não havia coragem de os enfrentar. Não acredito que tenha recebido um pagamento mensal do BES enquanto ministro. Para mim, isso seria uma grande desilusão. Mas, pior, seria mais grave de que muitos atos de corrupção que por aí andam (mesmo que do pagamento nenhuma corrupção nascesse), pois seria uma remuneração ilegal de um grupo empresarial a um político que podia tomar decisões que lhe interessassem.

Provavelmente, tais pagamentos (outra coisa é serem pagos a uma offshore, se não foram declarados fiscalmente) nada têm de ilegal por serem relativos a direitos vencidos antes de ir para o Governo. Mas não podemos saber.

Se nada disto for ilegal, fico estupefacto que Manuel Pinho já tenha deixado passar vários dias sem dar qualquer explicação (que não seja o argumento de que só fala e dá explicações no âmbito do processo em curso), ainda que apenas fosse negar que se trate de remunerações.

Claro que qualquer resposta tem implicações no processo e deve ser muito ponderada. Mas parece-me que a total indiferença aparente a esta estratégia da acusação (condenável e parece que mais motivada por uma guerra contra o Juiz de Instrução do que por outra coisa) é expressão ou resultado da mentalidade que referi a propósito das viagens de deputados.

Eu explico: Para a generalidade dos portugueses não é motivo de espanto que a notícia seja verdadeira. Com a tolerância resignada que é muito elevada para as falhas éticas e para o desrespeito da lei, tolerância essa que infelizmente está no nosso DNA (e isso será motivo para uma futura reflexão), provavelmente nada do que Pinho dissesse convenceria ninguém e, sendo assim, deverá ter pensado que melhor será nada dizer, guardar trunfos, e aguardar pelo interrogatório que será feito pelo MP para esclarecer.

Esse é um direito do antigo ministro da Economia e do seu Advogado, que me não compete criticar. O que devo afirmar é que não é saudável para o sistema político que se deixe a pairar tal possibilidade de grave comportamento, densificando-se com base na teoria (falsa) de que “quem cala consente”.

O fim da dedução de 5% dos vencimentos nos gabinetes políticos

Desconte-se a situação caricata da divergência em direto entre Rui Rio e o seu líder parlamentar, com o primeiro a dizer que acha bem o que o Governo e outro a rasgar as vestes horrorizado com essa possibilidade. Desconte-se o facto de ser um pouco absurdo (para não dizer mais…) que se deixem as deduções para estes assessores em vigor quando outros já as não sofrem. Esqueça-se que todas essas alterações são possíveis pelos impostos que não baixam e pelo facto de quem não é funcionário público e baixou os seus vencimentos não ter estas (em todo caso justas) recuperações. E desconte-se ainda o facto de ser pouco dinheiro (ou, parafraseando Vergílio, rari nantes in gurgite vasto…) o que está em jogo.

O que fica depois de disto são duas reflexões.

  1. Os gabinetes de membros de governo e de autarquias são onde está a generalidade dos políticos profissionais que trabalham para os partidos e que desse modo são pagos com os nossos impostos por acréscimo às dotações do orçamento de Estado (por isso o CDS e o BE, que vivem menos disso, foi quem mais protestou), e mais uma vez está o mundo político a receber de modo pouco transparente.
  2. A segunda reflexão é que a nossa tolerância para o tema é total: não queremos saber o que se passa no segredo desses gabinetes, não há movimentos cívicos para reduzir o peso do Estado por aí absurdo, mas se ao fim de muitos anos se acaba com uma redução dos vencimentos começamos a gritar, até que nos mostrem algo novo para de de imediato esquecermos a nossa “revolta”.

Vídeos de interrogatório de arguidos

Nunca na minha vida pensei que pudesse acontecer o que está a acontecer e que fosse a televisão de Balsemão a dar o exemplo. Claro que – como ouvi há dias afirmar um jornalista que sabe seguramente do que fala – a situação financeira dessa estação pode explicar muita coisa (mas parece que na passada 2ª feira, mais uma vez não ganharam nas audiências, apesar disso…).

Claro que para quem acha que é perda de tempo não condenar sumariamente Sócrates sem julgamento, isto não tem importância nenhuma, se é que não se considera uma bênção de Deus. Claro que não ajuda o que vemos noutros países; por exemplo no Brasil, com o juiz de instrução a mandar, sem subterfúgios como aqui, gravações de escutas investigados para os jornais… Claro que a tese de que os fins justificam os meios, espreita atrás de cada esquina desde que o mundo é mundo.

Mas o que é grave quanto a este abuso é que tudo fique por umas declarações vagas e levemente preocupadas de quem manda e faz a Justiça em Portugal e mais uma vez ninguém seja condenado pelo que é inequivocamente uma sucessão de crimes.

E, de novo, eis outro exemplo: Por aqui passa a nossa tolerância aos abusos, desde que não nos sintamos atacados pessoalmente. Enquanto não é connosco diretamente nada nos interessa nos abusos, tudo nos serve para retóricas radicalidades com que satisfazemos a nossa desejada boa consciência. Moral da história. Tudo apodrece, nada se altera, e o sentido cívico cada vez se reduz mais.

Nota:

O que hoje se soube sobre as inspeções à Santa Casa da Misericórdia, e vem descrito no Público, é um sinal exemplar na sua gravidade da gestão politica que o Governo faz sobre temas em que isso não devia acontecer.

A intervenção do Presidente da República sobre temas da saúde, em cima da estratégia de Rui Rio que se estava a iniciar é muito criticável. Quer seja para o prejudicar, quer seja para o ajudar, quer seja para as duas coisas em simultâneo.

E la nave va…

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