A dificuldade de um país velho em reformar-se

José Miguel Júdice cita, no Jornal das 8 da TVI, as novas leis do arrendamento para mostrar como é difícil reformar o país. E desafia o governo e a câmara a colocarem terrenos no mercado.

Um dos problemas clássicos dos processos reformistas é o que resulta da junção de três fatores sociológicos:

  1. A natural tendência conservadora e avessa à mudança dos povos.
  2. A falta de sincronia entre o que alguns perdem de imediato com as reformas e o que se ganha com elas apenas mais tarde.
  3. O facto de qualquer reforma afetar um grupo que tem algumas vantagens e tem imediata perceção do que perde, e beneficiar setores muito mais amplos que não percecionam essa vantagem.

Por isso é que fazer reformas é tão difícil e, paradoxalmente, é mais fácil implementá-las em épocas de crise do que quando tudo parece correr bem. O debate sobre as leis do arrendamento é um bom exemplo para ajudar à reflexão. O veto do Presidente da República à lei Uber podia ser outro. E vale a pena lembrar que este é tema antigo, pois já no século XVIII Ribeiro Sanches escrevia sobre as “dificuldades que tem um reino velho para emendar-se”.

Matar a reforma do mercado privado do arrendamento?

Parece evidente que o arrendamento não deve ser atividade reservada para o Estado. Parece evidente que, assim sendo, quem investe em habitação para arrendar quer ganhar dinheiro. Parece evidente que há um problema de escassez de oferta para arrendamento habitacional e que isso faz subir os preços. Parece evidente que a solução é aumentar a propensão a que se invistam poupanças em habitações para arrendar e com isso se aumente a oferta e se faça baixar os preços.

Ora, apesar disso, desde os tempos do salazarismo que se olhou para o arrendamento sem ter presente as evidências supramencionadas. O resultado é que o estado da habitação em Lisboa e no Porto é uma muito pesada herança da Ditadura; ninguém pode sobre isso ter dúvidas.

Mexer no regime do arrendamento habitacional afeta e prejudica quem beneficia de rendas antigas e se habituou a viver em casas em degradação. Não mexer, afeta os que não têm arrendamento e dele necessitam, impelidos para ficarem amarrados para o resto da vida a pagar um crédito bancário para compra de casa, que além do mais lhes dificulta a mobilidade na procura de emprego.

É natural que os primeiros se mobilizem intensamente e que os outros fiquem calados. E para ajudar a esta missa, existe a tendência para querer “sol na horta e chuva no nabal” ou, como dizia um amigo meu, acreditar que “todos temos direito a ser lindos, ricos e saudáveis”. Só assim se explica que se diga que é preciso aumentar o número de habitações para arrendamento, sabendo que é a iniciativa privada que pode resolver isso, e achar que, apesar disso, se deve voltar aos arrendamentos garantidos para a vida, ao controlo do valor das rendas, e até à expropriação do uso das habitações não ocupadas como defende Helena Roseta.

Eu sei que é muito bonito em Portugal atacar os que querem ganhar dinheiro com as funções básicas para a nossa sobrevivência. No mundo ideal dos iluminados que não aprendem com os fracassos, a saúde, a educação, a alimentação, a habitação, o transporte, a cultura, tudo isso seria tendencialmente gratuito, ou cada um pagaria segundo as suas possibilidades, suportando o Estado os custos usando para isso com os impostos pagos por todos os outros; mas ninguém parece lembrar-se no que deram tais fantasias: basta olhar para os regimes comunistas em que afinal apenas os privilegiados (que os há sempre…) beneficiaram dessa teoria. E sobretudo, o que os iluminados parecem esquecer é que o investimento imobiliário é altamente sensível a este tipo de questões. Isso é assim, quer os investidores se endividem ou usem as suas poupanças.

Os investidores sabem que a rentabilidade real demora muito a chegar, estão escaldados com o que guardam na memória em relação a ações de despejo que duravam muitos anos, têm receio de ser iludidos e por isso cada uma das enormes e inúmeras entrevistas de Helena Roseta é um ato de promoção para não haver investimento privado. E o Estado Social nada tem a dizer nos arrendamentos?

Dito isto, nada impede em sistemas capitalistas que o Estado tenha uma estratégia e implemente políticas que compensem a incapacidade do mercado em responder a objetivos de interesse público.
O problema é que o Estado reage, em regra, tarde e a más horas. Lembro-me bem de um conjunto de medidas de luta contra a seca que grassara em Portugal e que o então ministro Dias Loureiro fez publicar no Diário da República numa altura em que o País já estava a afundar-se em chuvas torrenciais.

Os fatores decisivos da situação atual são consensuais, de Roseta a Cristas, e existem há anos: vistos gold, residentes não habituais, crise das primaveras árabes no norte de África que ocorreu a partir de 2011, explosão do turismo urbano, digitalização das economias e do comércio (Uber, Arbnb, etc) que começou há menos de 10 anos.

O Estado Português e a Câmara de Lisboa deveriam ter agido há anos com medidas compensatórias. Mas o facto é que a política nos nossos dias se resume a reagir apenas às notícias e aos problemas que elas revelam. O resultado em matéria de arrendamento (e em tantos outros) está à vista.

Seja como for, mais vale tarde do que nunca. Se o Estado e o Município querem fomentar o arrendamento, não devem fazer a estupidez de destruir ou deixar pairar dúvidas em relação ao processo de reforma do arrendamento pelo menos antes dos seus efeitos totais se sentirem (e 98% da propriedade arrendada é de privados), processo reformista esse que, aliás, começou com António Costa.

O que o Estado e a CML podem fazer é concretizar a solução simples e inteligente que foi há dias proposta pela líder do CDS (mas sem que os media e os comentadores disso falassem): a CML é proprietária da antiga Feira Popular e, por isso, pode lotear essa enorme área para habitação com rendas controladas, através de projetos próprios, parcerias público-privadas ou venda de lotes pré-aprovados com essas condicionantes, criando bem mais de 1000 fogos. E pode fazer-se o mesmo com outros terrenos ou edifícios detidos pelo Estado e entes públicos onde vários milhares de fogos podem ser criados.

As medidas fiscais anunciadas pelo Governo podem ajudar à aplicação de capitais nesse grande projeto por parte de investidores nacionais e internacionais que apostam em segurança e gostam de investir para rentabilidades decentes e a longo prazo. Mas para isso não se pode voltar atrás no processo reformista. Claro que nada disso vai ser feito rapidamente. Mas ao menos que os iluminados lutem por isso em vez de destruir a economia privada.

Notas finais

  1. Escreveu-me um militar na reforma, a dizer que continua a ter um desconto de 5,9% todos os meses na sua reforma. Mea culpa, afinal, os membros dos gabinetes dos políticos não são os últimos a ficar livres dessa alcavala.
  2. Miguel Mattos Chaves fez uma interessante comparação entre Portugal e Espanha que resumo: o nosso salário médio é quase apenas metade do espanhol (€986 e §1640), a carga fiscal média sobre o trabalho dependente é quase 40% superior em Portugal (28,3 e 21,5%), os preços do cabaz essencial de compras é tendencialmente igual entre os dois países com vantagem para os espanhóis.
  3. Não admira por isso que a Moody’s e a OCDE estejam preocupados e Centeno esteja a tentar remar com a maré do fartar vilanagem do ano eleitoral. E que devamos estar conscientes de que por cada ponto percentual de subida dos juros a fatura será de mais 7 mil milhões de euros e que isso vai começar a acontecer seguramente nos próximos 2 a 3 anos.
  4. O Presidente da República vetou, com um texto sibilino, a lei Uber. Não se percebe se para liberalizar mais os táxis ou para regular mais a Uber e equivalentes. Temo que seja a ultima hipótese. Parece que em Belém também já começou a campanha eleitoral e que Rebelo de Sousa também não percebeu bem o seu próprio discurso em 25 de Abril…

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