Residente acidental
Que Lisboa tudo reúna é uma fonte de deseconomias de aglomeração. E, por isso, pergunto pelo direito a não ter de morar em Lisboa.
Há uns tempos, foi notícia com direito a capa de jornal que Lisboa receberia mais turistas por residente que Londres.
Em primeiro lugar, deixem-me dizer que fico muito contente por ver a intensidade turística ser indicador com direito a presença mediática. Quando o turismo ainda era a panaceia da economia portuguesa, fiz notar que recebíamos menos turistas que os nossos concorrentes directos, mesmo tendo em conta que eles são países maiores e mais populosos que o nosso. Mas fico menos satisfeita quando lhe trocam o nome e chamam pressão turística ou índice de saturação, sugerindo que maior intensidade é coisa negativa.
Ora, a definição de um valor a partir do qual se possa falar de pressão ou saturação é coisa que varia consoante o local que se esteja a considerar. E se, para um monumento ou para um parque natural, determinar a capacidade de carga é exercício relativamente simples, quando falamos de uma cidade a coisa complica-se. Ter meio turista por habitante ou cinco, per se, não nos dá qualquer informação. Para a sustentabilidade do destino, o que releva é a relação da população com o turismo. Em Lisboa, cuja área metropolitana recebe dois turistas por residente, os estudos mostram que a população está contente. Já no Algarve, onde só à conta do turismo interno a intensidade é de 2,5, há quem não se sinta bem acolhido.
Mas esta foi, sobretudo, uma observação metodológica. O meu ponto é outro. Sempre que leio as tais notícias, vem-me à mente a seguinte questão: quantos dos habitantes de Lisboa [da área metropolitana, entenda-se, porque quando eu falo de Lisboa não estou a pensar no município, seguindo o entendimento de João Seixas em 2010] são-no forçadamente? Isto é, quantos dos lisboetas por residência são de outras paragens e se vêem obrigados a vir para Lisboa por motivos profissionais?
É um problema que os nossos deputados até conhecem de perto. E, embora muitos deles consigam manter-se a residir fora de Lisboa, tenho por vezes a sensação de que algumas das propostas de lei que apresentam no Parlamento foram pensadas para resolver problemas que são apenas da capital (ou nem isso, somente de algumas das suas freguesias), como se o resto do país fosse efectivamente paisagem.
Por outro lado, as políticas públicas não devem ser concebidas de forma segmentada. A questão da habitação relaciona-se de modo óbvio com a da mobilidade e dos transportes. Mas também com a do ordenamento do território. A realidade do mercado imobiliário não pode ser desligada da macrocefalia do nosso país, que faz de Lisboa a capital de um império que não existe.
A política de habitação deve, pois, ser pensada em conjunto com a da desconcentração. Não se trata de acordar um dia e sortear serviços da Administração Central pelo país. Logicamente, onde há economias de escala, elas devem ser aproveitadas. Mas haverá economias de escala em ter, por exemplo, o Instituto da Vinha e do Vinho numa transversal da Avenida da Liberdade? E não poderia ir o Instituto da Juventude para Braga, que é um dos concelhos mais jovens do país? Ou ficar o Centro de Estudos Judiciários em Coimbra?
Que Lisboa tudo reúna é uma fonte de deseconomias de aglomeração. E de desigualdade. Muita gente pergunta quem tem direito a morar nela. No centro histórico de Lisboa, na verdade. E pedem políticas de habitação que o garantam. Invocam o artigo 65.ᵒ da Constituição portuguesa, mas esquecem-se que, sessenta artigos antes, é dito que “o Estado não aliena qualquer parte do território português”. E, por isso, eu pergunto pelo direito a não ter de morar em Lisboa.
Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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