O alojamento local foi torpedeado

Ao definir quotas, o Estado estará a interferir indevidamente no processo de alocação de recursos do mercado, que se tornará menos eficiente.

Foram ontem aprovadas no Parlamento medidas que irão alterar o regime jurídico do alojamento local. Fazem-no da pior forma: nuns casos, desencorajando o investimento, noutros casos, regulamentando o investimento. Nada que surpreenda. Afinal, ainda há dias, o senhor primeiro ministro, a propósito do estado da Nação, exclamava entusiasticamente: “não podemos voltar a aceitar um Estado minimalista”. Vai daí, talvez em busca do oposto, o Estado maximalista, os partidos da geringonça trataram de votar alterações à lei do alojamento local conferindo novos poderes aos municípios. Assim, como medidas principais, a maioria parlamentar de esquerda introduziu “áreas de contenção” (contra o alojamento local) a definir pelas câmaras municipais; concedeu poderes de veto aos presidentes de câmara sobre as até agora meras comunicações prévias; estabeleceu limites ao número de estabelecimentos por proprietário, e; estipulou contribuições adicionais de condomínio aos imóveis afectos ao alojamento local. No essencial, e independentemente de um ou outro ponto com o qual possa estar de acordo (por exemplo, a obrigatoriedade de seguros de responsabilidade civil que, creio, também terá sido votada favoravelmente) as alterações representam um retrocesso face ao que estava em vigor.

Assim, a exemplo da proposta de lei de bases da habitação, sobre a qual aqui escrevi a 25 de Abril deste ano, – que se arroga o direito de definir “a dimensão adequada da habitação” dos portugueses – as alterações legislativas de ontem seguem o mesmo sentido de estatização do investimento e de limitação dos direitos de propriedade dos investidores. Só assim se consegue compreender a atracção do legislador pela definição de um número máximo de estabelecimentos por proprietário. É certo que também a lei original de 2014 continha uma limitação do género (um máximo de nove apartamentos por proprietário por edifício), mas a nova limitação é muito mais apertada. E, desta forma, em vez de se promover a propriedade e a acumulação de património enquanto bem de investimento, dá-se o sinal oposto. Acumular e investir são desincentivados. É de uma insensatez bestial. De igual modo, a introdução de “áreas de contenção” só pode augurar o pior. Por um lado, vai-se minar o dinamismo do mercado que neste momento anima os centros das principais cidades portuguesas e que lhes tem permitido atrair investimento imobiliário associado ao turismo. Por outro lado, vai-se aumentar a probabilidade de, ao abrigo do poder arbitrário dos executivos camarários, se incentivar a velha habilidade portuguesa de “criar dificuldades para depois se venderem facilidades”.

Recorde-se que a lei do alojamento local foi originalmente aprovada em 2014. Coincidiu, grosso modo, com a primeira fase da tendência de valorização do mercado imobiliário que se iniciou no final de 2013 e que tem perdurado até hoje. É facto que esta valorização do imobiliário coincidiu com a própria retoma da economia, que também começou no final de 2013, pelo que, não é possível estabelecer relações de causa-efeito. Mas podemos observar correlações. E neste campo parece existir alguma evidência da aceleração da valorização do imobiliário, observável através dos índices publicados pelo INE, em simultâneo com a aceleração dos fluxos turísticos que suportam o modelo de negócio do alojamento local. Esta valorização levou a que exista hoje, sobretudo em certas zonas de Lisboa e do Porto, falta de oferta imobiliária residencial a preços que os portugueses possam pagar. É um problema cuja solução deveria passar, em primeiro lugar, por aumentar a oferta, através do licenciamento de novas zonas de construção (onde naturalmente fosse possível). Mas não pela quotização ou segmentação das que já existem. Na realidade, ao definir quotas, para além dos problemas já identificados, o Estado estará a interferir indevidamente no processo de alocação de recursos do mercado, que se tornará menos eficiente. Um mercado que, recorde-se, muito tem contribuído para gerar um efeito de riqueza junto dos proprietários portugueses (e, por esse País fora, somos quase todos proprietários) como há muito não se via.

A lei da oferta e da procura é a regra básica da ciência económica e o mecanismo de preços, que regula aquela, é a forma de aferir da existência de relações de escassez. Portanto, todo e qualquer economista deveria saber que a melhor forma de matar um mercado é através da imposição administrativa de um preço máximo inferior ao preço de mercado. No caso em apreço, não se impõe um preço administrativo. Impõe-se, em alternativa, uma quantidade administrativa. Infelizmente, a quantidade administrativa (máxima) apenas reforçará os interesses daqueles que já estão investidos no alojamento local – estes poderão aumentar o preço em face de uma menor oferta para uma igual procura (pelo menos num primeiro momento) – sem oferecer qualquer garantia quanto ao eventual direcionamento da quantidade remanescente para oferta residencial. Nem, acrescente-se, nenhuma garantia de que exista, de facto, a tal procura nacional por imóveis residenciais que tanto se alardeia. A vantagem de um sistema de mercado concorrencial, espontâneo e livre é mesmo essa: através do mecanismo de preços facilmente conseguimos aferir como estão as dinâmicas entre a procura e a oferta. Ao invés, sob a governação por decreto e de planeamento central facilmente se dá azo aos maiores embustes.

Há excessos no alojamento local? É provável que sim. E hão de existir muitos condomínios, onde a habitação permanente coexiste com o alojamento local, com razões de queixa quanto ao ruído e à falta de civismo dos que por lá passam. Mas para isso existe a regulação geral, a definição de linhas e fronteiras orientadoras, que pode ser legislada sem entrar no exagero do detalhe. Por exemplo, a exigência de seguros obrigatórios de responsabilidade civil, a exemplo do que sucede em muitas outras actividades económicas, afigura-se uma forma muito razoável de lidar com as “externalidades” negativas do alojamento local. Outras formas incluem regimes de sanções de simples fiscalização e aplicação, bem como o recurso a tribunais que decidam em tempo útil. Funções de soberania que o Estado pode e deve assegurar. Ao mesmo tempo, os condóminos poderiam também organizar-se, estabelecendo os seus próprios regulamentos de condomínio, vinculando dessa forma os detentores e utilizadores dos imóveis à observação das regras previstas e voluntariamente aceites por todos. Parecendo estranho à nossa cultura, a verdade é que se trata de prática corrente em muitos países desenvolvidos. E, seguramente, outras medidas afins, mais ou menos cooperantes, mas de adesão voluntária, seriam possíveis, sem se recorrer às medidas de racionamento da oferta que agora serão administrativamente introduzidas. Aguardemos, pois, pelos diktats dos politburos camarários e dos seus apparatchiks. Infelizmente, só podemos esperar o pior.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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