O Estado que não nos protege

É sabido que gosto de tratar em conjunto temas que aparentemente nada têm em comum. Para além de ser mais divertido, acho que pode ajudar mais a refletir sobre o que é essencial.

Hoje vou falar das casas de Pedrógão, das matas do Marão e dos impostos sobre automóveis. Porquê? Já respondo, mas comecemos por recordar do que se trata em cada caso.

As casas de Pedrógão

Tudo parece indicar que, após os fogos do passado ano e os apoios da sociedade civil e do Estado, houve pessoas que usaram habilidades para que casas de segunda habitação e ruínas fossem tratadas como casas de primeira habitação e com isso beneficiassem de apoios; e também me disseram que até carros de alta cilindrada foram comprados com esses apoios.

Como é hábito, a reação à denúncia foi que tudo isso são invejosos com o bem alheio, mas desmentir não vi ser feito…

As matas do Marão

Quem anda à chuva molha-se, é bem verdade, exceto para o Presidente Putin na final do campeonato do Mundo de futebol. E quem anda a pé, aprende. Foi o que se passou por mim, quando este fim de semana fui gentilmente abordado por um proprietário de floresta no Marão, que entre coisas me falou de uma magnífica mata de pinheiros Douglas (pinus sylvestris) junto à saída do Túnel do Marão, que é do Estado. Disse-me que a biomassa não retirada é tanta que escorre para a estrada nacional, o que faz prever que vá arder à primeira fagulha.

O imposto sobre a libertação de carbono pelos automóveis

Quem anda a pé, às vezes anda de carro. Isso permitiu-me ouvir uma notabilíssima entrevista do secretário-geral da ACAP (Associação do Comércio Automóvel de Portugal), Helder Barata Pedro. E vi-me a comparar com entrevistas a políticos e sonhar que todos estes passassem a ser helderes, baratas ou pedros! Ou que pessoas da sociedade civil, com esta qualidade, entrassem na vida política.

Entre outras coisas que aprendi, fiquei a saber que Portugal é um dos 6 países da União Europeia que tributa a percentagem de carbono libertado pelos veículos e de forma progressiva. Estamos como sempre na vanguarda; mas sem olhar para as consequências (outro exemplo são os subsídios às renováveis).

Por causa disso e de uma diretiva europeia, o imposto automóvel pode aumentar mais de 100% em 1 de setembro, apesar do compromisso de que essa Diretiva seria neutra para o consumidor, e de se estar há um ano à espera de saber como Portugal resolve o problema.

E aprendi também que o Banco de Portugal aplicou ao comércio automóvel um regulamento europeu para os empréstimos à habitação, o que tem efeitos kafkianos (por exemplo, o envio de um complicado impresso para a ASAE sempre que se venda um carro que custe mais de 15.000 euros, o que significa 400.000 impressos por ano), e agrava imenso os custos de contexto dos pequenos comerciantes de usados.

O que tem isto em comum?

Assim se exprime a falta de qualidade do Estado Português no exercício das suas funções para as quais pagamos impostos brutais. E revela também que quase sempre essa incompetência é ainda mais gritante porque fazer bem feito, sensatamente e a tempo e horas, não custava muito.

Comecemos por Pedrógão: seria muito difícil que as regras aplicáveis aos apoios exigissem a prova de que é primeira habitação a que ardeu, através da residência fiscal na data de 1 de janeiro de 2017 e, por isso, antes dos incêndios? Bastaria isso, se bem percebo, para não haver o problema que para além dos efeitos deletérios a nível social destas fraudes vai fazer o MP e a PJ gastar muito dinheiro a investigar.

Passemos às Matas do Marão: seria muito difícil que o Estado aplicasse a si próprio as regras que impõe aos privados e multasse os responsáveis pelas suas matas se não fossem limpas? Bastaria isso para se evitar a perda paisagística e económica do desleixo (e isso lembra-me um saudoso fim de semana com Américo Amorim e Jorge Sampaio, na Herdade do Peral há muitos anos, e a história da cortiça em propriedades públicas que não era tirada e acabava por matar os sobreiros…)

Passemos aos impostos automóveis: seria muito difícil, tendo presente o dever jurídico da neutralidade fiscal e dos efeitos brutais de aumento do imposto, legislar ou regulamentar uma solução antes da entrada em vigor do novo regime daqui a pouco mais de um mês?

O Estado vive para si próprio

O que tudo isto revela — e os exemplos, meu Deus, seriam às centenas — é que o Estado não sabe em regra prevenir e muitas vezes nem sequer remediar. Por motivos tão diversos como os vários tons de cor-de-rosa (e isto não é piada ao PS…), o certo é que os burocratas basicamente se estão nas tintas, “venha cá outra vez”, “estamos a fechar o guichet”, “não é aqui”, “falta um impresso”.

O Estado nasceu na História da Humanidade, por motivos semelhantes aos que mais tarde fizeram nascer os seguros: antecipar os problemas, proteger dos imprevistos, solucionar as situações que não conseguimos resolver sozinhos.

Quando o Estado falha nestas coisas e continua a comer-nos com impostos (foi impressionante ouvir o secretário geral da ACAP a explicar a brutal carga fiscal que está ligada aos automóveis), perde todo o sentido para existir.

O respeitinho com o monstro estatal não morre

Dir-me-ão que sempre foi assim, que a alegada procura e defesa do bem comum foi sempre uma história de embalar com que em cada conjuntura os que ocupam o Estado não enganam há séculos.

Mas o que me surpreende é que no século XXI, quando cada vez mais a sociedade consegue viver sem estar encostada ao Estado, em que pululam projetos empresariais privados como as startups, em que ninguém já tem ilusões que o Estado não nos consegue proteger bem na educação, na doença, na habitação, na reforma, não se ouçam vozes no espaço público a defender a iniciativa privada sem pudores e a lutar sem complexos pela diminuição das funções do Estado e pela baixa dos impostos.

Seria esse talvez o papel do CDS, mas visto de fora parece que foram para férias depois do resultado de Assunção Cristas em Lisboa há quase um ano, como se tivessem ficado cosmicamente cansados ou tenebrosamente assustados com o resultado.

Os animais também não se abatem

Este é um tema típico de cantinho das tontices, mas também serve de mais um exemplo da forma como o Estado não se preocupa com nada que não seja a sua sobrevivência.

Há dois anos a Assembleia da República legislou que se não podem abater cães e gatos “errantes” (seja lá o que isso for…) e, por isso, as autarquias devem ter programas de adoção e de esterilização dos bichinhos, centros de recolha (canis e gatis) com qualidade, proibição da eutanásia (exceto se forem perigosos, não estou a gozar…).

Não fizeram, como é óbvio, praticamente nada. Mas o velho e manhoso Estado, que adora legislar e não cumprir, não definiu sanções para estes incumprimentos nem quem responsabilizar.

No entanto (pois a gastar dinheiro são sempre geniais), o Estado criou “incentivos financeiros” para construir, aumentar e modernizar canis (não, o ar condicionado será apenas na próxima legislatura) e para esterilização (quase mais do dobro para cadelas do que para cães, que se fosse ao contrário os protestos seriam audíveis…), e se calhar em breve um programa social de amas para cães e gatos.

Entretanto, na mesma senda gastadora, vão fazer campanhas de sensibilização dos donos de animais, que terão ao menos a vantagem de dar dinheiro a ganhar a publicitários amigalhaços do Poder…

Serei seguramente politicamente incorreto, mas não consigo não perguntar: mas será que anda tudo doido?

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