Os juros negativos no crédito à habitação são racionais
A banca comercial, e o Banco de Portugal em particular, têm de se abrir e de repensar a sua forma de fazer as coisas. Precisam de sentir ar fresco. Precisam de encontrar uma outra racionalidade.
Há dias entrou em vigor a lei dos juros negativos no crédito à habitação. É uma lei com a qual estou inteiramente de acordo e que peca apenas por tardia. A partir de agora, sem retroatividade, sempre que da soma do “spread” e do indexante resultar uma taxa negativa, há lugar a uma dedução ao capital em dívida ou a um crédito a deduzir aos juros vincendos. É uma lei que, dado o nível das taxas Euribor, se aplica aos mutuários que no passado contraíram empréstimos com spreads quase nulos. Representando uma pequena franja do número total de mutuários, são ainda uns bons milhares de clientes – só no BPI, que ontem divulgou resultados, são três mil clientes, conforme destacou o seu presidente executivo.
A medida, que no parlamento foi amplamente apoiada, contando apenas com a abstenção do PSD, foi alvo de forte oposição do sector bancário, quer dos bancos comerciais, quer do próprio Banco de Portugal. Nada que surpreenda. Os bancos comerciais porque estavam naturalmente a defender os seus interesses. O Banco de Portugal porque tem estado frequentemente do lado errado da barricada. O presidente da Associação Portuguesa de Bancos classificou a medida como o “princípio da irracionalidade económica”. Mas a crítica, que tem algum fundamento teórico – a taxa de juro representa a remuneração do custo de oportunidade e do factor tempo –, não deixa de causar alguma perplexidade. Afinal de contas, os contratos são claros: a taxa de juro final resulta da soma de um “spread” e de um indexante. Se é negativo, por que razão não há de ser passado ao cliente?
Os críticos da medida falham o alvo. O alvo não deveria ser o parlamento que, neste caso, apenas devolveu correspondência, equilíbrio, racionalidade, e letra de lei, aos contratos do crédito à habitação. O verdadeiro alvo da indignação corporativa deveria ser o Banco Central Europeu (BCE) e a sua política de repressão financeira. Mas, sobretudo, o verdadeiro foco de indignação deveria ser a incúria de gestores bancários que, durante uma certa época, andaram a conceder crédito à habitação a remunerações quase nulas. Note-se que de nada vale bater no ceguinho. Não resolve os “legacy costs” da banca e a olhar pelo retrovisor somos todos muito bons.
O propósito deste artigo não é esse. O meu propósito é outro. É perceber o que podemos aprender com o passado, e perceber também em que é que esta nova lei pode ajudar no sentido de redirecionar a oferta bancária, evitando a irracionalidade de outrora. Ora, o ponto principal a reter é que não faz sentido cobrar um prémio de risco (o “spread”) tão baixo quando falamos de operações a tão longo prazo.
Voltando à racionalidade, a regra deveria ser simples: quanto maior o prazo, maior o custo. É por isso que em condições normais a curva de rendimentos da dívida apresenta declive positivo. É o que acontece nas emissões soberanas e nas emissões corporativas. Mas se assim é, então, que sentido faz cobrar pouco mais do que zero ou até mesmo 1,4%, como em média se pratica hoje em Portugal, no crédito à habitação? Porque, evidentemente, há uma garantia associada ao crédito à habitação: a hipoteca do imóvel. Todavia, a hipoteca pode representar uma ilusão de garantia, em particular em épocas de folia, quando as avaliações deixam de ter conexão com a realidade, ou quando os valores emprestados excedem o valor das garantias.
Naturalmente, todos devem ser responsabilizados. E, conforme escrevi aqui há semanas, a solução não é por o Banco de Portugal a gerir bancos comerciais. Cada banco deve fazer o seu trabalho e, no caso específico do crédito à habitação, um tipo de crédito a muito longo prazo, trata-se de salvaguardar um conjunto de medidas de gestão de crédito que se afigurem prudentes. Medidas que, incluindo avaliações, garantias e taxas de juro, compensem o risco de ocorrência de imparidades bem como o custo do capital do próprio banco.
Não é fácil. Se fosse, seríamos todos banqueiros. E a verdade é que o BCE inundou o mercado de liquidez, levando à redução das taxas de juro. Não foi só aquela liquidez que o BCE gerou, através de juros baixos e programas de compra de activos, mediante os quais foi cedendo liquidez. Foi também aquela que o próprio induziu através da imposição de taxas de depósito negativas aos bancos comerciais que guardassem depósitos junto de si. Com tanta liquidez a desaguar no mercado, aconteceu aquilo que sucede quando a oferta de alguma coisa é muito superior à sua procura: o preço diminuiu. E deste modo chegamos às Euribor’s (indexantes) que, representando taxas de juro interbancárias utilizadas pelos bancos para emprestarem dinheiro entre si, são hoje negativas em todos os prazos.
Os bancos têm excesso de liquidez. Logo, ao contrário de outros tempos, em que um banco pagava uma taxa de juro sobre um montante que pedia emprestado junto de um outro banco, hoje, os bancos excedentários dão-se ao luxo de “pagarem” aos bancos deficitários para se verem livres de alguma liquidez em excesso que tenham em balanço. Mas o indexante negativo é em larga medida exógeno aos bancos; ele é “produzido” pela repressão financeira do BCE. Não há, portanto, razão para não ser repassado ao cliente, em especial, quando a margem de lucro do banco não é o indexante, mas sim o “spread”.
O modelo de fixação das taxas Euribor não é perfeito e, por isso, está em reformulação. Porém, independentemente das falhas da Euribor, Portugal continua a evidenciar uma situação peculiar na banca. O volume total da concessão de crédito continua a diminuir numa base anual. Neste particular, as empresas portuguesas pagam juros mais altos que os das suas congéneres europeias, quando ajustados à redução dos “spreads” soberanos. E, no entanto, a taxa de juro que os bancos portugueses cobram no crédito à habitação é inferior à da média europeia.
Metade do crédito bancário em Portugal é crédito à habitação, mas é nesse oceano vermelho que os bancos se vão posicionando, numa altura em que o custo do capital continua a ser tendencialmente superior à rentabilidade dos capitais próprios. Ora, tudo isto não deixa de causar uma certa estranheza. E quando assim é, o mais provável é estarmos perante uma situação de oligopólio ou, visto de outra forma, perante um sector onde vigoram elevadas barreiras à entrada.
Entre estas barreiras, para além das licenças atribuídas pelo regulador, conta-se naturalmente a protecção contratual de que os bancos beneficiaram ao longo das últimas décadas, e de que a oposição aos juros negativos mesmo que contratualmente definidos é sintomática. Trata-se de uma protecção que, desaparecendo, os deixam vulneráveis a esta época de mudança do paradigma bancário e financeiro, numa altura em que o cidadão comum há muito que deixou de sentir simpatia pelo sector financeiro. A banca comercial, e o Banco de Portugal em particular, têm de se abrir e de repensar a sua forma de fazer as coisas. Precisam de sentir ar fresco. Precisam de encontrar uma outra racionalidade.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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