O Estado que não sabe gerir os seus imóveis quer gerir os dos outros
Porque é que o Estado não pega nos imóveis, 20% dos quais vazios, e dá início a uma política pública de habitação e imobiliário com base nos seus bens? E transfere serviços para fora de Lisboa?
A ANACOM – Autoridade Nacional de Comunicações (a entidade que regula o sector) fez saber que quer comprar em Lisboa um espaço com 4.500 metros quadrados para se instalar, reduzindo assim custos que hoje são de 1,2 milhões de euros de renda anual (cerca de 100 mil euros por mês).
É certamente uma medida sensata e ponderada, como se espera de uma entidade pública responsável. Mas esta “normalidade” tem mesmo de ser assim? Porque é que todos os organismos do Estado têm que estar, por defeito, em Lisboa?
A pergunta não é minha, tomo-a emprestada de André Marquet, que a colocou no Facebook como comentário à notícia: “E porque é que tem de ficar em Lisboa? Se há agência que faz sentido estar fora de Lisboa é esta. Quando quase todos os grandes problemas de gestão e cobertura do espectro rádio eléctrico estão no interior do país: SIRESP, TDT, celular, fibra, radio FM, interferências.”
Faz todo o sentido questionar esta aparente racionalidade. Não sabemos se a ANACOM é das entidades que deviam estar na primeira linha para uma saída de Lisboa ou que percentagem dos seus mais de 400 trabalhadores trabalha já, efectivamente, fora de Lisboa. Ou quantos deviam, de facto, estar distribuídos pelo território em vez de sentados numa secretária no centro de Lisboa. Mas a verdade é que as questões técnicas que ocupam a entidade são, de facto, territoriais e não acontecem no eixo Terreiro do Paço – Av. da República.
Tome-se apenas este como um exemplo de oportunidade para as centenas de entidades públicas que se acotovelam umas às outras no cada vez mais apertado parque imobiliário de Lisboa. Sim, porque além das vantagens óbvias da descentralização, quero colocar a questão na perspectiva da gestão das cidades, do mercado imobiliário e da habitação, que tanto tem ocupado o debate público nos últimos tempos.
É evidente que Lisboa vive nos últimos anos uma enorme pressão de procura de imóveis que fez disparar os preços. Isso acontece por boas razões – a procura turística é, talvez, a mais importante – e com impactos muito positivos já amplamente mostrados: a renovação dos historicamente decrépitos centros urbanos, a criação de valor económico para o que não tinha, o nascimento de novos negócios, a criação de postos de trabalho, aumento das receitas fiscais, equilíbrio da balança corrente, etc.
O impacto negativo é que cada vez menos residentes conseguem pagar os preços do imobiliário e são obrigados a sair para zonas periféricas menos inflacionadas, que possam suportar.
É óbvio que o Estado deve ter uma política pública de habitação sólida, estável e transparente que garanta o acesso a uma casa condigna a quem não tem meios para a ter. A grande questão está no desenho dessa política pública e, sobretudo, quem deve suportá-la e a quem se dirige de facto. Porque uma coisa é lutar pelo direito a uma habitação condigna. Outra é lutar por uma habitação condigna que tem que estar obrigatoriamente em Alfama, na Baixa Pombalina, na Lapa ou mesmo no concelho de Lisboa. São questões muito diferentes.
Para além dos programas de habitação social que se desenvolveram um pouco por todo o país e que quase acabaram com a vergonha que eram os bairros de lata que proliferaram até aos anos 90, o que temos verificado é que o Estado tem atirado o ónus da política pública de habitação para os proprietários. Durante décadas tivemos as rendas congeladas e, mostrando que alguns tiques do salazarismo continuam vivos e encontram até seguidores em espectros partidários que deviam deles ser insuspeitos, é sempre a isso que regressamos quando se fala de garantir o direito de habitação: os proprietários que o paguem.
Esta abordagem parte do princípio, tantas vezes errado, que em cada senhorio há um bilionário e em cada inquilino há um legítimo candidato ao Rendimento Mínimo Garantido. Não é verdade e, querendo, o Estado tem neste momento na Autoridade Tributária todos os elementos de que necessita para fazer a radiografia cruzada de rendimentos e propriedade imobiliária.
A pergunta que faço é esta: este Estado que é tão rápido a pôr e dispor do património alheio e a intrometer-se em legítimas decisões dos cidadãos, tem feito o quê na parte que lhe toca? Como se comporta o Estado proprietário e o Estado arrendatário?
Para não variar, o Estado proprietário não fica bem nesta fotografia. Os últimos dados tornados públicos sobre o parque imobiliário do Estado dizem-nos que as entidades públicas dispõem de cerca de 4.500 imóveis devolutos ou sem ocupantes – um em cada cinco imóveis nas mãos do Estado.
Deste imenso património, porque é que o Estado não pega nos imóveis adequados e não dá início a uma política pública de habitação e imobiliário com base nos seus próprios bens?
Tenho uma resposta para isso: o Estado é desorganizado e incompetente, perde-se em burocracias desnecessárias, uma entidade não sabe o que a entidade do lado está a fazer, muitas vezes nem sabe verdadeiramente que património tem e isso inviabiliza a execução de qualquer política que comece pela prata da casa.
Um Estado neste estado de ineficiência custa caro aos cidadãos e anda sempre financeiramente com a corda na garganta. Por isso, esse mesmo Estado que não sabe gerir o seu património vende-o muitas vezes a preço de saldo porque precisa da receita para compor as contas daquele orçamento anual. Este é o segundo erro, porque desvaloriza património público e transfere rentabilidades muito simpáticas para privados que sabem detectar oportunidades e valorizá-las. Há até quem lhe chame especuladores.
E como se comporta o Estado arrendatário, que precisa de espaços para instalar os seus serviços?
É possível que o imóvel de que a ANACOM precisa exista algures no portfólio de património do Estado mas que ninguém dê por isso.
Se assim for, o que se poderá passar é que a entidade reguladora vai pagar preços de mercado – os tais especulativos – a um privado enquanto o Estado os vende a preços muito em conta para que eles entrem no tal “carrossel especulativo”.
E também é possível que esse imóvel de que a ANACOM precisa não esteja no coração de Lisboa mas num concelho limítrofe da capital ou, o horror dos horrores, algures na “província”.
E aqui voltamos ao ponto de partida: o centralismo do Estado é um enorme factor de pressão para o mercado imobiliário, sobretudo em Lisboa, onde ele é mais flagrante.
O mercado imobiliário é suficientemente flexível entre as suas várias utilizações. Um imóvel que hoje é ocupado por escritórios pode amanhã ser habitação e depois um hotel ou alojamento local.
A acumulação de entidades públicas nas zonas centrais de Lisboa onde não precisam nada de estar aumenta a escassez de imóveis e desequilibra os preços.
Além disso, os milhares de trabalhadores dessas entidades querem, legitimamente, viver próximos dos locais de trabalho e este é um factor adicional de pressão imobiliária.
Muitas empresas privadas já deram conta disso há muito tempo e começaram a sair do centro da cidade. O florescimento de parques empresariais nos concelhos vizinhos das grandes cidades deve-se a essa racionalidade: porque é que hei-de pagar o dobro se a minha actividade não me obriga a estar no Marquês de Pombal ou no Rossio? Esta mudança de sedes de empresas “arrastou” milhares de pessoas para fora das cidades e criou novas centralidades.
Claro que isto se passa com empresas privadas, pobres, sem recursos, mal geridas e sempre a tentar poupar uns trocos. Com o Estado é diferente porque, como sabemos, é rico e qualquer entidade pode e deve estar nas zonas mais nobres, ainda que a sua larga maioria não tenha balcões abertos ao público.
O local ideal do Instituto da Vinha e do Vinho é no centro de Lisboa, na rua Mouzinho da Silveira, mesmo perto da afamada Região Demarcada da Av da Liberdade, não é? E para o Instituto de Conservação da Natureza e da Floresta há melhor localização do que a Av. da República, mesmo ao lado da mancha florestal da Praça de Saldanha? E podíamos seguir a lista apenas nas áreas mais óbvias. Porque é que as entidades públicas da Agricultura estão todas instaladas em Lisboa?
Este Estado que não se organiza, que não faz a parte que lhe compete, que não dá bons exemplos à sociedade é o mesmo que adopta uma atitude moralizadora para os cidadãos.
Não sabe gerir o seu património mas não se inibe a transferir o ónus de políticas públicas para privados. Queixa-se da especulação imobiliária mas é o primeiro a alimentá-la com a gestão desastrosa dos seus imóveis. Lamenta a falta de imóveis em Lisboa mas recusa retirar daí serviços que estariam muito melhor noutro lado.
Um Estado com muita dificuldade em libertar-se dos tiques de aristocracia e da prepotência de um “posso, quero e mando” que se arrasta há décadas.
Sobre a ANACOM, apenas uma dica. Estou a escrever este artigo em Viseu. Decerto encontrariam aqui espaços muito bons e – estão sentados? – a menos de metade do valor que pagam no centro de Lisboa. E decerto que a qualidade de vida dos funcionários ia disparar.
E, para não ser acusado de bairrismo por esta ser a minha cidade, quem diz Viseu, diz Castelo Branco, Vila Real, Évora ou Beja. Tudo locais com espectro radio elétrico para gerir.
Nota: O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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