Lampedusa e a Ponte de Génova

O sucesso de uma economia de mercado requer um aparato legal e uma infraestrutura económica e social que só o Estado poderá enquadrar.

E a ponte Morandi desapareceu do céu de Génova para sempre. Nas ruínas que restam repousam os restos mortais de todos os que confiaram no Estado como a última garantia da liberdade de circulação e da proteção da vida. Erro fatal. Entre acordos, concessões e parcerias, a responsabilidade dilui-se no labirinto das cláusulas contratuais e nas impenetráveis tecnicalidades jurídicas. Mas o caso é político e reclama a lucidez livresca de uma ideia de economia política.

Não adianta ao Governo de Itália acusar a União Europeia pelas regras absurdas, pela imposição de uma austeridade devastadora. Nada serve ao Governo de Itália evocar a corrupção endémica, a contabilidade das campanhas eleitorais, a eficiência da máfia, o recuo do interesse público face ao acumular dos lucros privados. A questão do colapso da ponte Morandi é um problema de engenharia económica e de arquitetura política que não se resume à dicotomia exclusiva entre o público e o privado.

E aqui talvez seja interessante convocar a autoridade de Adam Smith. A riqueza de uma nação reside na capacidade de cooperação entre indivíduos, não na promoção de um individualismo exacerbado em que a sociedade se transforma em pontos luminosos no caos exato do interesse próprio. O poder na metáfora da “mão invisível” emerge precisamente do reconhecimento de um interesse próprio bem orientado. Nenhum indivíduo por si só sabe construir uma ponte, mas a ponte resulta do esforço coordenado de muitos indivíduos numa associação complexa entre o mercado e as instituições. O mesmo esforço que se exige para a preservação e a manutenção de uma estrutura artificial como uma ponte.

Num tempo político em que a esquerda e a direita se dividem em narrativas ingénuas e pedestres entre o predomínio do público e a ascensão do privado, convirá sublinhar que uma economia de mercado não converge no significado e na simplicidade isolada de uma ideia de capitalismo — a acumulação de rendas, os interesses velados, o impulso da ganância, a redução mercantilista de todos os aspetos da vida em sociedade. O sucesso de uma economia de mercado requer um aparato legal e uma infraestrutura económica e social que só o Estado poderá enquadrar.

Mas um Estado não autoritário, matizado sim pela ideia de pluralismo, pela conceção de democracia e suportado no eco de uma confiança mútua. Os mercados só funcionam no sentido da prosperidade e da justiça relativa quando associados a um conjunto de instituições políticas e sociais fortes e reconhecidas. Entre o sentimento moral e a riqueza das nações não existe contradição, apenas complementaridade. A ponte de Génova foi vítima da corrupção de uma ideia generosa.

Se a ponte Morandi atravessa uma cidade, o Mediterrâneo é uma ponte que atravessa dois mundos. Lampedusa está mais próxima do Norte de África do que da Sicília, uma viagem de barco que se espreguiça por 9 longas horas. Pela paisagem árida e repleta de rochas, pelas casas simples e rasteiras, o viajante desatento poderá julgar-se na Tunísia ou mesmo na Líbia.

O espetáculo decadente e grandioso do barroco siciliano ficou no privilégio do Continente. Existe um porto, uma rua comercial – a Via Roma –, e 500 habitantes. Para os milhares de migrantes económicos que todos os dias tentam chegar a este ponto no mar Mediterrâneo, esta desolação representa o paraíso e a salvação, este isolamento é o extremo invisível de uma ponte que liga a miséria e a devastação ao sonho da prosperidade e da riqueza das nações – a Europa. A Europa que se está a transformar na derradeira esperança para o desespero do ‘mundo em desenvolvimento’ e em que os lugares que tinham sempre sido europeus estão a adquirir as características típicas dos lugares dos não europeus. Pela pressão do Inverno Demográfico, pela escassez de mão-de-obra, os mais afortunados dos migrantes de Lampedusa acabarão a trabalhar nos estaleiros da nova ponte de Génova. É a perturbante ironia de um ciclo infinito.

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