Caso Sócrates vai calhar ao juiz bom ou ao juiz mau?

Está criada a convicção de que se o juiz escolhido for Ivo Rosa, os acusados podem ter alguma esperança. Se for o outro, estão tramados. Isto deveria levar-nos a refletir sobre a existência do TCIC.

O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) tem apenas dois juízes; um é o mediático e superstar Carlos Alexandre e o outro é o mais reservado e circunspecto Ivo Rosa. Um deles será escolhido, por sorteio eletrónico, para fazer a instrução da Operação Marquês que tem 28 acusados, incluindo o ex-primeiro-ministro José Sócrates e o ex-banqueiro Ricardo Salgado.

Esta fase de instrução é uma espécie de mini julgamento prévio, em que o juiz escolhido olha para o processo para decidir se o Ministério Público, a quem cabe a ação penal, agiu bem ao deduzir a acusação e se o processo segue ou não para julgamento.

Saber se será Carlos Alexandre ou Ivo Rosa a olhar para as mais de 20 mil páginas da Operação Marquês nem sequer devia ser notícia. Mas é. À volta do processo está a ser montado um autêntico circo, com os advogados de defesa a constituírem claques para torcer por este ou aquele juiz e a defesa de José Sócrates a exigir mesmo que na sala esteja um técnico para explicar como funciona o programa informático que sorteará o juiz.

Este sorteio não devia ser notícia, mas é porque está a ser criada a convicção e a perceção de que se o juiz escolhido for um (Ivo Rosa), os acusados podem ter alguma esperança. Se for outro (Carlos Alexandre), os acusados estão tramados. Isto é grave, sobretudo porque esta convicção não é leviana e é baseada no track record de ambos os juízes, — um claramente mais próximo das posições do Ministério Público (Carlos Alexandre) e o outro com uma visão bastante mais garantística da justiça.

Espelhando esta convicção mais ou menos generalizada, escrevia o jornal Público esta semana que Carlos Alexandre “tem por tendência autorizar as diligências pedidas pelos procuradores e levar a julgamento os suspeitos acusados pelo Ministério Público”. Já sobre Ivo Rosa escrevia que é pessoa non grata dos procuradores, já que os “coletivos a que presidia tinham tendência para absolver ou para atenuar a gravidade dos crimes e aplicar penas leves”.

Aqui chegados, coloca-se a seguinte questão. A sorte ou o azar de um arguido deveria depender de apanhar o juiz x ou o juiz y? Os juízes não deveriam olhar para os processos de forma isenta, independentemente das desavenças que possam ter com o Ministério Público? A corrente académica que os juízes defendem — mais ou menos garantística — deveria ditar a sorte ou o azar de um cidadão aos olhos da Justiça?

Olhando para a Operação Marquês e para os dois juízes da Instrução, o bom senso poderia levar-nos à conclusão de que Carlos Alexandre não deveria ser o escolhido para esta fase do processo já que, como explicava o advogado João Miguel Barros no Observador, “por mais independência que pretenda exibir, olhará para o arguido na fase da instrução com as mesmas convicções que o levaram a validar as decisões acusatórias do MP. É um juiz comprometido com a investigação criminal”. É importante não esquecer, por exemplo, que Ricardo Salgado abdicou da fase de instrução e uma das justificações apresentadas foi precisamente a de que se lhe calhasse Carlos Alexandre no sorteio “o arguido não tem ilusões quanto aquele que seria ou será o desfecho de uma eventual instrução”. E já agora também é relevante recordar que os advogados de José Sócrates promoveram um incidente de recusa contra Carlos Alexandre.

Dito isto, e por exclusão de partes, ficaríamos com Ivo Rosa. O problema é que o juiz madeirense construiu para si uma imagem de alguém que está em permanente guerra e em desacordo com o Ministério Público. Já escrevi aqui sobre as mil e uma barreiras que tem levantado e que têm dificultado a investigação ao caso dos CMEC, da EDP, de António Mexia e Manuel Pinho. O jornal Público recordava esta semana outros casos em que Ivo Rosa esteve envolvido e que, em nome da tal visão garantística da Justiça, teve decisões completamente erradas, como foi o caso do “gangue do multibanco” em que os juízes da Relação disseram que Ivo Rosa levou “ao exagero” o princípio de que a dúvida beneficia os suspeitos. Graças à Relação, em vez da absolvição pretendida, muitos do dito gangue foram condenados a penas de prisão efetiva.

A possibilidade de recurso à Relação é precisamente a válvula de segurança do sistema judicial para evitar que a sorte de José Sócrates seja uma ou outra em função de o sorteio ditar este ou aquele juiz nesta fase de Instrução.

O Tribunal Central de Instrução Criminal esteve vários anos a funcionar apenas com um juiz (Carlos Alexandre), tendo uma mudança na lei em 2013 alargado esse número para dois. Aqui chegados, — e antes que Carlos Alexandre e Ivo Rosa transformem a Justiça numa tertúlia jurídica, em que a sorte ou o azar dos suspeitos dependa da uma relação mais ou menos azeda que têm com o Ministério Público, — não faria sentido acabar de vez com o TCIC?

Esta proposta foi aventada por Henriques Gaspar, numa entrevista recente ao Expresso. O ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça diz que “trata-se de um tribunal cuja existência eu nunca compreendi e que hoje em dia não tem razão de ser. As funções do TCIC deviam ser desempenhadas pelos tribunais de instrução criminal”.

Provavelmente, se esta fase da Operação Marquês estivesse nas mãos dos sete juízes do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, o sorteio da fase de instrução não se teria transformado num circo, em que dois juízes vão fazendo malabarismos jurídicos para tentar fazer valer esta ou aquela visão que têm da Justiça.

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