“Se Costa tivesse maioria, onde estava o Infarmed?”

O caso Infarmed deixou-nos à vista o dilema das próximas legislativas: se vêm aí tempos mais difíceis, será melhor dar mais poder a António Costa? Ou ele vai ceder à tentação da autocracia?

Autocrata: substantivo de dois géneros

  1. Soberano de um país que exerce sozinho o poder absoluto.
  2. Indivíduo que gere (uma empresa, uma organização) com poder absoluto.

O diagnóstico

Parece que o Infarmed não vai para o Porto e essa é a decisão certa. Pouco importa o politicamente correto com sotaque incluído porque a mudança não era descentralização, era favor político com centenas de pessoas pelo meio. Pouco importa se António Costa faltou a uma promessa, porque as promessas não valem em si mesmas – se não têm justificação, devem mesmo cair.

O que realmente importa aqui é o processo de decisão. E uma dúvida que nos fica ao ouvirmos a explicação do primeiro-ministro no debate quinzenal desta semana:

“Eu não revogo o que disse, eu suspendo o que disse”
“Se isto fosse uma autocracia do António Costa, o Infarmed já estava no Porto.”
“Pareceu ao Governo responsável, em vez de persistir numa teimosia, contra tudo e contra todos, aguardar por esta comissão [de descentralização], a benefício do consenso político”.
“Não se governa por caprichos”
“A qualidade dos processos de decisão melhora a democracia”.

O que António Costa disse faz todo o sentido, mas falha num ponto essencial: nunca admitiu que estava errado, só que estava isolado, impossibilitado de decidir. O que António Costa disse faz todo o sentido, mas levanta-nos uma dúvida: se Costa já tivesse uma maioria absoluta, onde estava agora o Infarmed?

O problema…

… É que esse é o cenário que vamos ter todos que discutir ao longo do próximo ano: Costa e o PS merecem uma maioria absoluta? É melhor para o país ele governar precisando do apoio da esquerda (ou de Rui Rio, ou de Santana Lopes), ou ser capaz de tomar as decisões necessárias sem estar “na mão” de alguém ou ter que ceder a outro(s) partido(s)?

A resposta, claro, depende de cada um de nós. Mas para que cada um possa definir a sua posição, depende também de outras variáveis: a evolução da economia (vai haver mais ou menos dinheiro para governar?); a perceção que temos do que é preciso fazer (e em que direção); e o estilo de liderança de quem está ao leme.

O que o “processo de decisão” no caso Infarmed nos levanta é a dúvida sobre o estilo de liderança de António Costa. Desde logo porque esse processo foi feito ao contrário: em vez de começar na identificação de um problema, começou num anúncio de uma decisão fechada; em vez de começar num estudo, terminou nele; em vez de terminar com o anúncio de uma decisão, acabou com um adiamento tático. O destino do Infarmed, afinal, fica nas mãos da comissão que estudará a descentralização, assim como na responsabilidade do líder do PSD, com quem Costa acordou a sua criação.

Será melhor suspender uma má decisão do que persistir na teimosia? Sim, mas não chega. Porque não percebemos se Costa aprendeu a lição. Nem se a “suspensão” da transferência do Infarmed é um disfarce para um estilo “autocrata” que não tinha como impor, sozinho, a sua decisão.

A dúvida nem se colocava se António Costa não nos tivesse deixado a pensar sobre a sua teimosia e sobranceria, se alguma vez tivesse reconhecido erros, se tivesse aceitado críticas sem atirar responsabilidades para outros, ou se tivesse mostrado sempre transparência no método de governação. Também não se colocaria se Costa não cedesse à tentação de mudar as regras do jogo para que o jogo acabasse com o resultado pretendido. Será tanto assim?

  • Sobranceria? Por exemplo no modo como tem atacado o Bloco, ainda parceiro fundamental do Governo, aproveitando a ferida aberta com o caso Robles.
    No modo pessoal como ataca a direita sem permitir a crítica em igual tom.
    Assim como no modo como se esquiva a perguntas incómodas. Como quando Fernando Negrão lhe perguntou se sabia que o seu ministro da Saúde só queria ir explicar o caso Infarmed à AR em…. Fevereiro, pergunta a que Costa respondeu assim, com um sorriso irónico: “Deve ter uma boa explicação”.
  • Culpas? Não as aceitou no caso de Tancos, onde Costa viu o ministro desvalorizar o furto, pôr em causa a sua existência, proteger toda a estrutura militar e manter todos em funções, tudo sem que alguém assumisse qualquer responsabilidade.
    Nem na tragédia dos incêndios, onde o próprio Costa distribuiu as culpas irmãmente (pela Altice, governos passados, deputados e jornalistas que não ligaram às suas propostas sobre a Floresta), recusando até os insistentes pedidos da sua ministra para sair pelo próprio pé (até ser forçado a isso, pela tragédia de Outubro e pela mão do Presidente).
    Tão pouco na polémica sobre a entrada da Santa Casa no Montepio, onde atirou a culpa para Santana, para o Banco de Portugal, sem alguma vez assumir que o Governo queria salvar o banco de colapso usando para isso uma instituição de solidariedade.
  • Transparência? Não foi a regra quando o Governo recusou dar à comunicação social documentos sobre o que se passou nos incêndios de 2017; ou quando o PS impulsionou alterações ao financiamento dos partidos sem avisar ninguém.
    Ou quando parou a publicação de dados sensíveis sobre as pensões dos políticos.
    Nem quando pôs um parecer na gaveta porque a conclusão não era a desejada.
  • Regras? A tentação, às vezes, é mudá-las, como mostrou o seu desafio aos partidos sobre o concurso público lançado para a ala pediátrica do Hospital de São João, sugerindo Costa que se aprovasse uma lei para (ultrapassando outra lei) fazer a obra por ajuste direto, sem concurso público, nem visto prévio do Tribunal de Contas – tudo sem reconhecer que, se era preciso um concurso público, o seu Governo tinha demorado três anos a mais a tomar uma decisão que é urgente para tantas crianças.
    Se achar que era retórica e que isso nunca aconteceu com este Governo, lembre-se do que aconteceu à legislação sobre a banca, cuja alteração permitiu ao BPI resolver o seu problema com Angola e consolidar a sua estrutura acionista em Espanha.

A dúvida sobre o estilo de liderança de António Costa não se colocava se ele, à sua maneira e quando a maré não corre de feição, não nos fizesse lembrar o primeiro-ministro que dizia que nunca se tinha enganado e raramente tinha dúvidas.

Mas a dúvida talvez nem tivesse a mesma importância se, quando chegarmos às legislativas, não tivéssemos pela frente um ciclo político bem diferente daquele que tem caracterizado esta legislatura – política e economicamente.

Para não me repetir face a artigos anteriores, nem o leitor desconfiar de um excesso de pessimismo, recorro ao que disse Francisco Louçã na interessante conversa que eu e o Paulo Baldaia tivemos com ele na TSF esta semana:

“Vai ser preciso um acordo muito mais robusto. Os próximos quatro anos vão ser diferentes, porque vamos ter uma situação económica muito mais difícil e, porventura, uma situação na União Europeia muito mais ameaçadora. Só há razões para isso: há mudança no BCE [Draghi vai sair], não sabemos o que vai acontecer ao stock de dívida pública que está no banco, há tensões económicas que vão reduzir a capacidade de exportação portuguesa, será mais difícil a margem de manobra [para governar]”.

A conclusão…

É, portanto, evidente que vamos estar perante um dilema importante quando chegarmos às legislativas: se os tempos que se avizinham vão ser mais difíceis, será melhor dar mais poder a António Costa? E terá ele características de liderança para nos governar em maioria? Ou ele vai ceder à tentação da autocracia?

Pondo a dúvida de outra maneira: na conjuntura que se segue, é maior o risco de ingovernabilidade ou de uma ditadura da maioria?

P.S. Já me enganei uma vez com António Costa, no início da legislatura, quando disse que temia a instabilidade económica que a ‘geringonça’ poderia provocar. Enganei-me porque Costa conseguiu formar uma maioria parlamentar estável, construtiva e razoavelmente prudente (para as circunstâncias em que se formou). É possível portanto, que ele me volte a provar errado. Se assim for, daqui a um ano estarei a fazer o mesmo: assumir o erro e apontar o risco que se segue. Já dizia o alemão Albert Schweitzer, que recebeu o Prémio Nobel da Paz: “Dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros. É a única.” É o que lhe prometo e o meu melhor conselho ao primeiro-ministro.

Notas soltas da semana:

  • Ainda a PGR: era tão bom para a escolhida (e para a democracia) se houvesse audição parlamentar prévia à pessoa escolhida, ainda antes da sua posse.
  • O segredo de Justiça para Rui Rio? É saber coisas sobre os processos e dar pistas disso, como fez no caso de Tancos? É negociar pactos da justiça com os partidos sem os portugueses saberem quais são as suas ideias?
    A firmeza para o PS? É deixar os taxistas protestar durante cinco dias, parando meia cidade, e no fim dizer-lhes que os autarcas lhes poderão resolver o problema.
  • A sensibilidade de Costa? É fazer contas públicas ao custo dos cuidadores informais sem, no mínimo, reconhecer que eles estão a substituir o Estado numa função social que este não tem como pagar neste momento.
  • A força do Benfica? É ver um secretário de Estado do Desporto acusado no Parlamento de beneficiar o clube e não ver ninguém a falar do tema.
  • A força dos militares? É ver como uma investigação judicial mostra à evidência as suas fragilidades, cumplicidades e vulnerabilidades sem que alguém assuma a culpa e saia de cena.
  • Um prémio na altura certa? A medalha de mérito que o ministro da Economia deu a Fernando Pinto, ex-líder da TAP, precisamente um dia depois de sabermos que é suspeito de uma crime enquanto geriu a empresa pública.
  • Um mea culpa incontornável? O do Expresso e Observador, reconhecendo o erro na notícia sobre a PGR. Sobre isto haveria mais a dizer, mas fica para a semana.

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