O Orçamento que não deixa Centeno dormir
Um défice alto demais, uma dívida em risco de incumprimento e uma crise à vista. O Orçamento que tem que preocupar Centeno é entregue já na segunda-feira (mas não é o que está a pensar, ainda).
O diagnóstico
Má sorte ser presidente do Eurogrupo. Quando se preparava para entregar o último orçamento, porventura o mais fácil de toda a legislatura, Mário Centeno viu crescer um problema gigantesco que lhe pode aterrar nas mãos. Trata-se, claro, do orçamento que o Governo italiano vai enviar, também na segunda-feira, para a Comissão Europeia. E que se arrisca a ser o primeiro chumbo liminar da Comissão Europeia a um orçamento da zona euro.
Para Centeno, no papel de ministro das Finanças português, seria uma dor de cabeça dupla: Esta crise em Itália põe em risco os resultados de três anos de esforço, podendo ter efeitos explosivos nas contas do seu próximo orçamento; e o braço de ferro de Itália com Bruxelas pode ter consequências imprevisíveis no na política portuguesa, medidas na influência do Bloco e PCP, à beira de uma decisiva campanha eleitoral.
Já para Centeno, o presidente do Eurogrupo, esta luta pode bem contaminar o resto do seu mandato, deitar por terra qualquer tentativa de reforma da zona euro e pôr em causa a própria arquitetura da moeda única – para não dizer, no limite, a sua sobrevivência.
O problema
Em Itália, o problema começa e acaba na natureza do Governo que foi eleito há escassos meses. Composto por uma coligação populista, nacionalista e eurocética, o Executivo “Liga / 5 Estrelas” pôs o alfa e ómega da sua atuação num desafio ao status quo europeu. Com a sua popularidade subir à medida que ele se acentua.
Se o drama dos refugiados foi um ponto de partida, o natural ponto de chegada é o do seu primeiro orçamento que, pelas regras definidas, terá que passar pelo crivo da Comissão Europeia – e receber a sua aprovação formal.
Em Itália, porém, as promessas eleitorais cruzam-se mal com uma dívida gigantesca (a segunda maior da Europa) e com um crescimento económico anémico de há muitos anos. Pelo que bastou um esboço do orçamento ser enviado para Bruxelas para se abriu o braço de ferro. Em síntese, eis os quatro eixos de um problema que Centeno conhece bem, com os desenvolvimentos mais recentes:
- As contas mal feitas. Pior do que as promessas eleitorais que custam muito dinheiro, do que o défice proposto de de 2,2%, do que uma subida do défice estrutural em 0,8 pontos percentuais, o maior problema do Orçamento que o Governo italiano se prepara para apresentar é que assenta numa ilusão de crescimento, numa previsão muito duvidosa sobre o crescimento da economia. Que não só contraria as estimativas do banco central, como levou já um cartão amarelo do organismo que vigia as contas públicas dentro do Parlamento – já com um aviso de que acabará com o seu veto;
- A desconfiança externa. Face à incerteza que todo o processo está a causar, o FMI já reviu em baixa as suas estimativas de crescimento para Itália, tornando mais difícil o processo de elaboração e execução do orçamento. Acresce a isto que duas das principais agências de notação (S&P e Moody’s) marcaram para 26 de outubro a revisão do rating da República – ameaçando já uma revisão em baixa. O suficiente para levar os juros da dívida do país para os níveis mais elevados dos últimos quatro anos e meio.
- O contágio. Com todo este rewind do filme da crise da zona euro, sabemos o que vem a seguir: outros mercados começam a sentir na pele o receio de uma rutura nas negociações entre Itália e a Comissão Europeia. Começando pelos países mais frágeis. A Grécia tem visto a sua bolsa afundar, sobretudo as ações da banca; por cá, fez cair a bolsa, também uma entrada nova no mercado da Sonae, e já penalizou uma emissão de dívida pública a mais longo prazo.
- Mais a pressão externa. Na Alemanha, o ministro das Finanças que substituiu o temido Schauble, Olaf Scholz, deu uma entrevista ao Handelsblatt avisando o Governo italiano de que estará a “exportar a sua irresponsabilidade” para o resto da Europa. Em Bruxelas, aguardando o documento final, Moscovici e o vice-presidente da Comissão, Valdis Dombrovskis, enviaram uma carta para Roma lembrando – de forma seca – as regras e objetivos a que Itália se propôs e explicando que o “draft” não cumpre com esses pressupostos – “o que causa grave preocupação”, anotam os dois”.
- …Mais a pressão sobre a Comissão. Para quem tenha em memória a flexibilidade que a Comissão mostrou, por exemplo, nas negociações orçamentais com o Governo português, é importante registar que, em Bruxelas, a Comissão está sob fogo precisamente por essa razão. Para além dos países credores, largamente representados no Eurogrupo liderado por Mário Centeno, também o Comité Orçamental Europeu (que supervisiona os planos de todos os países do euro) veio acusar o comissário Moscovici de “ter ido longe demais” ao não “aplicar as regras” de forma mais rigorosa num momento em que a economia europeia dava mais espaço aos governos para diminuir as dívidas. “É tempo de clarificar isso”, disparou esta semana Niels Thygesen, o presidente desse organismo.
Para Mário Centeno, este embate inicial lembra um filme conhecido. Conhecido pelo que viu acontecer, à distância, na Grécia (com um governo que só era diferente porque era de extrema-esquerda e não de extrema-direita, e porque estava preso a um financiamento externo). Mas conhecido, também, pelo seu próprio embate inicial com a Comissão Europeia e o Eurogrupo, quando lá entregou o seu primeiro orçamento no inicio de 2016, com o apoio de bloquistas e comunistas.
Naquela altura, Centeno levava uma ambição parecida: pedir flexibilidade à Europa, propondo um modelo económico mais ousado, com muitas promessas de distribuição de rendimentos que deveriam puxar pela economia. Naquela altura, face à resistência da Comissão Europeia, Centeno cedeu bastante: moderou as suas ambições, recalendarizou algumas promessas e garantiu que, ao menor desvio orçamental, travaria a fundo. Como hoje sabemos, foi a ceder que ganhou: mantendo mão de ferro nas contas do dia-a-dia, ganhou a confiança dos parceiros e investidores, poupou em juros da dívida e conseguiu um crescimento que lhe deu margem para acomodar outras exigências dos parceiros.
Centeno ganhou, mas é verdade que teve sorte, beneficiando de uma Europa em franco crescimento económico. Acontece que essa sorte não é a italiana: não só a economia europeia está a desacelerar, como os riscos económicos aumentaram muito: o BCE inverteu a política monetária, o Reino Unido está prestes a sair, a América está a rasgar acordos comerciais. E, sim, a Itália é mesmo grande demais para cair – o que põe muito mais pressão nas negociações do que com Portugal.
Mas agora, para Centeno, agora na pele de presidente do Eurogrupo, tudo isto é um mar de dilemas. Porque se Centeno quer tudo menos uma rutura negocial e uma crise com Itália…
- Sendo defensor de uma maior flexibilidade na aplicação de regras europeias, Centeno não tem qualquer interesse em dar a outro Governo o que não conseguiu para si.
- Sendo o ministro das Finanças de um governo apoiado por partidos eurocéticos (PCP e BE), não tem qualquer interesse em dar-lhes um trunfo negocial que pode prejudicar as contas certas do seu último orçamento.
- Sendo presidente do Eurogrupo, não tem qualquer interesse em colocar-se ao lado de um governo populista que está à procura de alianças entre os governos e partidos mais perigosos da Europa (da Frente Popular de Le Pen aos governos de Visegrado).
A conclusão
Nestes dias de medo, como presidente do Eurogrupo, Mário Centeno só tem uma de duas saídas: ou usar estes dias para ser um verdadeiro presidente do Eurogrupo e convencer os populistas italianos a seguir a sua estratégia – revendo o orçamento e aplicando a cada medida um caráter progressivo (suscetível de ser suspensa se a economia não estiver a crescer o previsto e as contas estiverem a afundar); ou esperar pela próxima reunião, já uns dias depois do pronunciamento obrigatório da Comissão Europeia, e rezar que esta não tenha aplicado a Itália o primeiro chumbo total de um orçamento da zona euro – e que os ministros das Finanças deem espaço a uma negociação que acabe com cedências mútuas.
Para Centeno, uma rutura nas negociações entre Roma e Bruxelas é a certeza de que passará do céu ao inferno, com a perspetiva de uma crise do euro para gerir (interna e externamente) na reta final do seu mandato.
Mas, para Centeno, uma cedência ao populismo italiano seria uma dupla derrota: como presidente do Eurogrupo, que tem como missão a coesão da zona euro e a sobrevivência do euro; e como ministro das Finanças “austero” que esteve três anos a dizer que não, resistindo a à pressão de dois partidos eurocéticos para esticar a corda com Bruxelas e alargar uns furos ao cinto, em nome de uma ideia de sustentabilidade.
Ironia das ironias: Centeno e António Costa, os dois políticos portugueses que mais clamaram contra a austeridade e mais pediram flexibilidade à Europa, terão agora que convencer os populistas de Itália a fazerem como eles: ceder no essencial do seu discurso político e jogarem de acordo com as regras da Europa. A Itália, para eles, está como a Grécia esteve para Passos – só a cedência deles à “austeridade” lhes garante os frutos da governação passada.
Notas soltas da semana
- O pesadelo de Tancos. Face à gravidade das suspeições, o primeiro-ministro não pode dizer ao país que “a informação que tem” é que o seu ministro da Defesa não sabia do documento que lhe denunciou o encobrimento militar. Ou põe mesmo a mão no fogo, ou tem que prescindir dele.
- Mais uma dúvida sobre Tancos: os militares que souberam – como o ex-chefe de gabinete de Azeredo Lopes – não tinham o dever de informar o chefe da Casa Militar do Presidente da República?
- A regulação é o que um Governo quiser? A sorte que é termos um Governo minoritário no Parlamento, que não pode decidir sozinho.
- Um aeroporto é onde a ANA quiser? Diz que já há acordo com o Governo, mas não se sabe sequer se houve estudo de impacto ambiental sobre a localização no Montijo. Será que foi entregue a um chefe de gabinete?
- Um problema de realidade: Cavaco revelou ter sido intermediário entre Sócrates e Passos para “evitar uma crise política”. Deus sabe como resultou.
- Um problema de educação: a Inspeção Geral de Educação quer que os miúdos com nove anos lhes digam por quem é que se sentem atraídos. Deus lhes perdoe.
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