Os Descobrimentos e a suposta “idade de ouro” de Portugal

A História deve ser compreendida no seu todo, e é por isso que não considero que os Descobrimentos mereçam um particular destaque, no âmbito de um museu específico.

Jared Diamond, quando esteve em Lisboa há pouco tempo, afirmou que “se Lisboa só pudesse ter um museu, esse museu deveria ser o das descobertas”, dando gás à controvérsia que tem havido sobre a designação do museu a criar. O que é um facto é que os Descobrimentos parecem constituir uma fixação para os portugueses (apesar de, na verdade, nunca ter existido um grande império).

Os Descobrimentos são uma componente importante da identidade nacional e um motivo de orgulho para muitos portugueses. Aliás, a recentemente publicada História da Expansão e do Império Português, abre com a frase, também presente na contracapa, “A Expansão portuguesa confunde-se com a própria História de Portugal”. Será isto verdade?

Não há dúvida que os Descobrimentos foram um período de destaque para Portugal, embora seja necessário reconhecer que, evidentemente, esses feitos, pelo menos a nível tecnológico, também tiveram uma forte influência estrangeira, por exemplo árabe. De qualquer modo, o efeito a longo prazo, incluindo ao nível do pensamento intelectual europeu, foi bastante importante. E a nível económico, o comércio intercontinental que daí resultou viria a ter alguma importância para a economia europeia como um todo, ainda que os seus efeitos tenham demorado a manifestar-se.

Mas talvez devido a esse pioneirismo português verificado durante os séculos XV e XVI, propagaram-se vários mitos relacionados com esta época, sendo um dos mais comuns o de que Portugal teria ficado muito rico em consequência dos Descobrimentos. Existe uma ênfase desproporcionada sobre este período, tanto ao nível da compreensão popular da história, como da historiografia tradicional. Existem aqui dois problemas.

Em primeiro lugar, como a análise histórica, em geral, não é de natureza quantitativa (nem sequer comparativa), perde quase sempre uma perspetiva global. Como se observa no gráfico seguinte, o século XVI não correspondeu, de todo, a um volume alto de comércio intercontinental. De um ponto de vista quantitativo, a única coisa verdadeiramente especial sobre o comércio intercontinental português, na altura dos Descobrimentos, é o facto de já existir.

Nota: No gráfico apresentado, o comércio para a Holanda e a França correspondem a 1780. Os valores no gráfico estão por pessoa e a preços constantes, ou seja, ajustados à inflação, sendo por isso comparáveis no tempo.

Em segundo lugar, o século XVI foi um século de estagnação económica. O crescimento do rendimento em Portugal só começa a ser sustentado a partir de meados do século seguinte. Mesmo assim, é bem possível que o comércio tenha tido algum efeito positivo antes – o que não pode ter sido é muito grande, porque o próprio volume desse comércio nunca o foi durante o século XVI. Mais tarde viria a ser maior, é verdade, mas não é possível que o efeito tenha sido grande antes do século XVIII.

O mito que vale a pena colocar em causa é a ideia de que Portugal teria ficado muito rico em resultado dos Descobrimentos, nomeadamente na sequência do comércio com a Ásia, como se refletiu na divulgação de certas expressões populares – “a árvore das patacas” ou “um negócio da China”. Este comércio pode ter enriquecido pontualmente algumas elites. Mas devido ao seu baixo valor geral no século XVI, o efeito dos “Descobrimentos” não terá sido, nem poderia ter sido, suficiente para enriquecer o país, que essencialmente dependia da agricultura.

A História deve ser compreendida no seu todo, e é por isso que não considero que os Descobrimentos mereçam um particular destaque, no âmbito de um museu específico. Não me oponho a tal museu até porque acho um disparate querer julgar o passado com os valores do presente, como às vezes é feito por alguns. Mas penso que seria preferível a ideia de haver um Museu da História de Portugal. Esse museu daria atenção, até possivelmente destaque, aos Descobrimentos, mas poderia e deveria cobrir toda a nossa História.

  • Senior Lecturer (Associate Professor), Department of Economics, University of Manchester

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