Merkel e as Valquírias
Merkel, a Iron Frau, deixa uma Alemanha próspera mas politicamente dividida. Merkel, a esfinge, deixa uma Europa indecisa entre dois caminhos e lugar nenhum.
Merkel fica mas vai. O mais ilustre zombie político vive mas está morto. O colapso político da Chanceler fica envolvido no silêncio da Europa e na complexidade da identidade nacional da Alemanha.
Antes de mais a questão do nacionalismo alemão. O primeiro grande problema da Chanceler no seu mandato, que já leva 13 anos, é a questão da identidade nacional. Os dois grandes partidos da Alemanha, CDU/CSU e SPD, definem a identidade política da nação com base num consenso de políticas: defesa do mercado, defesa do estado social, tudo convergente numa economia social de mercado. Este sentido de nação implica a aceitação da mudança e do crescimento económico com base numa maioria etnicamente alemã e alicerçada em valores da tradição cristã como base de uma moralidade pública.
A decisão de Merkel em 2015 de abrir as fronteiras aos refugiados no apogeu da crise na Síria, veio alterar radicalmente este consenso do pós-guerra. Os eleitores CDU/CSU sentem-se traídos e transferem o voto para o AfD (Alternative für Deutschland), um partido ligado à Alemanha profunda e com um discurso típico da direita radical. Merkel corrige a política de imigração com ligeiros desvios para a direita. Mas tal deslocação causa uma reacção nos eleitores do SPD, parceiros de coligação, e que imaginam uma Alemanha mais liberal e aberta à imigração e ao mundo. Como tal, a compensação observa-se na transferência de voto do SPD para Os Verdes (Die Grünen), um partido de matriz urbana com valores ligados ao comunitarismo e ao ambientalismo. Aqui entra o passado e a história da Alemanha em acção.
O país vive uma profunda divisão, por um lado, entre as grandes cidades e o interior com as pequenas cidades; por outro lado, entre os mais educados e aqueles com menor nível de instrução – a classe mais educada e urbana pretende uma Alemanha mais global e menos territorial; a classe com menor instrução e que vive fora das grandes cidades deseja uma sociedade mais homogénea e protegida por fronteiras. Em todos os cenários, a CDU/CSU perde para a AfD e o SPD perde para os Grünen.
Os dois grandes partidos do centro político estão em profundo declínio com Os Verdes a caminho de se tornarem no maior partido de uma Alemanha reunificada. Na antiga Alemanha de Leste, o AfD é já o maior partido, de tal modo que, combinado com a expressão eleitoral do antigo Partido Comunista, Die Linke, alcançam um score a rondar os 50% das intenções de voto. Passados 30 anos da Queda do Muro de Berlim, a política na Alemanha de Leste aproxima-se familiarmente do cenário que se verifica em muitos países do antigo Pacto de Varsóvia, muito longe da normalidade política dos países Ocidentais.
A falência política de Merkel fica bem evidente no retrato estático de uma Alemanha dividida – Merkel não é Bismarck. A incapacidade cultural e a inteligência política capaz de recriar a necessária identidade nacional, capaz de unir católicos e luteranos, ocidentais habituados às regras da democracia liberal e populações de leste rotinadas na autoridade da democracia popular, eis a grande herança política do consulado Merkel.
Depois vem ainda o silêncio da Europa. Merkel deixa um enorme vazio no coração da Europa, um vazio político talvez expresso no fim do sonho de uma Europa Federal. Com o Brexit e sem os ofícios de Berlim, a Europa fica ainda mais debilitada para se definir politicamente entre a lógica do aprofundamento ou o preceito do alargamento. Aliás, a Europa experimenta um novo período, não de alargamento, mas de contracção, com o supracitado Brexit. O sucessor natural de Merkel no contexto da Europa será certamente Macron. Na ausência de um eixo Paris-Berlim forte e efectivo, na eliminação do efeito mediador da Grã-Bretanha, Macron surge politicamente isolado para responder às exigências e à complexidade das reformas que se projectam. Fala-se naturalmente nas reformas associadas à eficiência e à viabilidade da Zona Euro, a saber, a aproximação à ideia de um “orçamento comum” e o horizonte possível de “transferências orçamentais” de modo a reforçar a coesão do projecto político europeu. No ponto de vista das tensões internas na União, a relação com o Grupo de Visegrado fica bastante debilitada. No ponto de vista das relações externas da União, a questão das ambições políticas da Rússia e do expansionismo económico da China ficam igualmente sem actores políticos com influência e peso na balança de poderes internacional.
Merkel, a Iron Frau, deixa uma Alemanha próspera mas politicamente dividida. Merkel, a esfinge, deixa uma Europa indecisa entre dois caminhos e lugar nenhum. Tal como Weimar, perdida entre as heranças de Goethe e de Schiller e os portões de Buchenwald.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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