Com passes gratuitos quem deixava o carro em casa?
O preço dos passes é das primeiras barreiras que afastam os utilizadores de carro próprio do autocarro, metro ou comboio? Os inquéritos dizem que não.
Poucas frases dizem tanto em tão poucas palavras como esta: “A cidade avançada não é aquela em que os pobres andam de carro, mas aquela em que os ricos usam transporte público”. A autoria é atribuída a Enrique Peñalosa, político colombiano que foi presidente da câmara de Bogotá, e resume uma das batalhas mais importantes que colectivamente temos que travar por razões ambientais, económicas e de qualidade de vida: a mudança de hábitos na mobilidade urbana.
O objectivo de retirar carros das ruas e levar mais pessoas a utilizar os transportes públicos é consensual e o governo identifica bem a sua importância no Orçamento do Estado para 2019: “A promoção do transporte coletivo, e consequente transferência modal por redução do uso do transporte individual, constituirá uma das áreas de foco das políticas públicas do Governo em 2019”.
Os dados da Área Metropolitana de Lisboa (AML) indicam que apenas 25% dos residentes utilizam transportes públicos, valor dos mais baixos em cidades estrangeiras comparáveis.
Importa, pois, saber se as medidas concretas são as mais prioritárias e mais eficazes para atingir esses objectivos. O documento diz, e bem, que “a redução da dependência face ao automóvel passa por assegurar uma melhor cobertura da rede de transportes públicos e padrões mais elevados de fiabilidade, regularidade, qualidade e atratividade do serviço prestado”.
Mas de concreto, definido, com custo calculado e financiamento garantido temos apenas “o Programa de Apoio à Redução Tarifária (PART), que consistirá num apoio de 83 milhões de euros às Autoridades de Transportes das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto e Comunidades Intermunicipais”.
É o subsídio, desenhado em conjunto com os autarcas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, que vai permitir uma redução no preço dos passes sociais nas duas mais habitadas regiões do país.
Sejamos claros. O preço de alguns passes sociais combinados na região da Grande Lisboa pode atingir os 170 euros por mês (de Palmela) ou os 140 euros (de Vila Franca de Xira). É um custo que pode ser incomportável para muitos orçamentos familiares, se pensarmos no que são os nossos salários mínimo e médio e na necessidade de dois ou mais elementos da família precisarem de o comprar.
Faz, por isso, todo o sentido que para muitas famílias os passes sejam ainda mais sociais.
Mas uma coisa é uma política de rendimentos para as famílias de mais baixos recursos, que é feita com vários instrumentos e apoios sociais.
Outra, e é disso que se está a falar com esta medida, é promover a utilização dos transportes públicos e retirar carros individuais das cidades. Para isso é preciso que os que utilizam pouco ou nada os transportes públicos passem a fazê-lo.
Para isto a pergunta que se impõe é esta: o preço é a primeira – ou, vá lá, uma das primeiras – barreira que afasta os utilizadores de carro próprio do autocarro, metro ou comboio?
Podemos mesmo fazer a pergunta mais radical: se os transportes públicos fossem totalmente gratuitos, quantos dos que hoje não utilizam passariam a utilizá-los?
Podemos ter uma ideia disso através do “Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa 2017” do Instituto Nacional de Estatística.
Aí, quando se pergunta aos residentes nas duas Áreas Metropolitanas que utilizam o transporte individual, o preço aparece apenas como sétimo motivo em Lisboa e como 12º no Porto para o fazerem.
À cabeça aparecem invariavelmente a rapidez, conforto, rede de transportes públicos sem ligação directa ao destino, serviços de transportes públicos sem frequência ou fiabilidade necessárias, ausência de alternativa ou motivos profissionais.
Também não deixa de ser revelador que mesmo entre os que utilizam o transporte público o preço é apenas o terceiro motivo para o fazerem. A falta de transporte individual ou de outras alternativas são os primeiros motivos apontados.
Portanto, o que há a fazer é, infelizmente, muito mais vasto, difícil e demorado do que a subsidiação de preços dos transportes. É preciso investimento, coordenação entre os vários agentes, planeamento, gestão eficiente, flexibilidade, serviços orientados para as reais necessidades dos utentes, pontualidade, conforto.
É preciso, em suma, agir em tudo aquilo em que o país é, por regra, menos competente e eficaz.
A subsidiação é certamente uma benção para os orçamentos de muitas famílias – e menos para outras, mas voltamos a entrar num ciclo da universalidade de apoios sociais – mas, só por si, muito pouco contribuirá para os objectivos anunciados no próprio Orçamento: “o programa específico de apoio ao tarifário no transporte coletivo para o conjunto do país, que terá um profundo impacto nos padrões de mobilidade”.
Se o obstáculo não está na capacidade económica da procura mas sim na qualidade e quantidade da oferta era aqui que os recursos públicos deviam ser concentrados prioritariamente. Assim, para já estamos perante uma medida inserida numa política de rendimentos e não numa política de mobilidade urbana. Passar um cheque é muito mais fácil mas pode não mudar nada.
(O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico)
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