A cultura do desmazelo financeiro
A ética empresarial do Estado está infelizmente suportada na opacidade. Quanto menos se publicar melhor, quanto menos se escrever melhor, quanto menos se falar melhor ainda.
Os hospitais públicos integrados no serviço nacional de Saúde (SNS) registaram em 2017 o seu pior ano económico de sempre e o EBITDA do sector terá sido negativo em quase 300 milhões de euros, segundo uma noticia divulgada esta semana. Dada a gravidade da situação, seria muito interessante conhecer os números em detalhe. Mas, a exemplo do que sucede com os hospitais EPE (entidades públicas empresariais), que apesar de dotados de autonomia continuam na prática a funcionar como os seus irmãos do SNS, a informação prestada pelo Estado sobre as suas próprias entidades é escassa. Vergonhosamente escassa.
Na verdade, é inconcebível que no sítio da Direcção Geral do Tesouro e Finanças (www.dgtf.pt) continuem a figurar, como últimos dados financeiros disponíveis, inúmeras informações referentes a 2012 ou a 2013. Para além de incompleto, o desmazelo dos dados fornecidos pela DGTF é também evidente porquanto algumas informações mais recentes, ali obsoletas, se obtêm através de outras fontes. Mas seria ali que tudo deveria estar centralizado e disponível. Lamentavelmente, não está.
O sector privado é confrontado, e bem, com regras cada vez mais exigentes de reporte financeiro. Já no sector público a regra parece ser contrária: o tempo é de relaxamento. Antes de mais, há aqui um problema cultural. Quem está no topo da cadeia não quer saber das melhores práticas. Neste contexto, de nada servirá termos entidades como o Conselho de Finanças Públicas ou o Tribunal de Contas a olhar para o processo orçamental se a atitude de quem ocupa os lugares cimeiros do poder for a de fechar o olho.
O gasto público, porque é financiado com recursos obtidos pelo Estado pela via coerciva, deveria ser muito mais escrutinado que o privado. Mas não é. Em primeiro lugar, porque não há uma disponibilização adequada de informação – de que a DGTF é apenas um exemplo – e, em segundo lugar, porque se nada existir para analisar também o escrutínio deixará de ser possível. Como dizem os antigos, ao silêncio não se responde e, na falta de resposta, quem critica fica a falar com a parede.
A ética empresarial do Estado está infelizmente suportada na opacidade. Quanto menos se publicar melhor, quanto menos se escrever melhor, quanto menos se falar melhor ainda. Neste aspecto, os serviços integrados do Estado são provavelmente o segmento do aparato estatal mais necessitado de uma lufada de ar fresco e de transparência de reporte de informação. A exemplo do que sucede na Irlanda, também em Portugal se deveria adoptar o princípio do reporte financeiro ao nível de cada ministério e de cada agência governamental. Nesta evolução, gradualmente, poderíamos almejar mecanismos de reporte económico-financeiro mais completos, que trariam transparência ao processo orçamental do Estado porquanto toda a execução de alto a baixo seria conhecida em detalhe.
Todos os anos, o Tribunal de Contas reitera as suas críticas sobre o incumprimento da lei de enquadramento orçamental. Mas todos os anos se insistem nas mesmas falhas e lacunas. O Conselho de Finanças Públicas (CFP) tem afinado pelo mesmo diapasão. E em especial com este Governo, que desde sempre tem revelado incómodo perante a necessidade de prestar contas e de justificar os seus cálculos, o CFP tem insistido na necessidade de obter informação bastante e completa para sejam fundamentadas as projecções orçamentais e os impactos orçamentais das políticas adoptadas. Mas também na relação com esta entidade os poderes cimeiros têm procurado fazer gato-sapato dos seus interlocutores.
Deste modo, regressando aos serviços integrados e ao sector empresarial do Estado, mais importante do que existir uma entidade independente com o poder de fiscalizar as contas daquelas unidades públicas, seria talvez mais pragmática a introdução de uma fórmula mediante a qual só aquelas que tivessem a publicação de contas em dia recebessem os subsídios e as dotações estipuladas no Orçamento do Estado. Seria uma espécie de “descativação” no bom sentido: incentivando o rigor e a transparência orçamental.
A sonegação de informação por parte do Estado representa a deslegitimação do poder. Por um lado, porque o Estado, representando o instrumento agregador das vontades individuais – e não uma vontade em si mesma –, tem de prestar contas aos cidadãos. Por outro lado, porque o Orçamento do Estado, representando uma autorização de despesa, deve condicionar a execução dessa mesma despesa ao cumprimento de boas práticas por parte das instituições públicas.
Até aqui temos sido habituados a esperar o condicionamento do Orçamento do Estado sujeito aos humores do Ministério das Finanças através das céleres cativações. Porém, seria preferível que, ao limitar a execução da despesa pública, a limitação fosse em prol de bens como o rigor ou a transparência, em prol de um sistema de incentivos que contribuíssem para melhorar o processo orçamental em Portugal e a saúde financeira das instituições. A alternativa é a falência das entidades públicas, hoje dos hospitais, amanhã de outras quaisquer, e o desrespeito por aqueles que, apesar de tudo, mantêm a máquina a funcionar.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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