Se Tourada é literatura, leiam Saramago, não Manuel Alegre
Alegre diz que quem não percebe as touradas “não percebe a poesia, não percebe a literatura”. Se o critério da discussão é esse, então não leiam um aspirante a Nobel, leiam José Saramago.
Manuel Alegre já usou os mais variados argumentos para defender as touradas e o IVA a 6% nos espetáculos tauromáquicos. Alegre já disse que era uma questão de liberdade, já disse que era uma questão de democracia, já disse que era uma questão de consciência, já disse que era uma questão de arte e cultura, agora veio dizer que, afinal, é uma questão literária.
A questão sobre as touradas foi ressuscitada na discussão do Orçamento do Estado para 2019 quando a ministra da Cultura, Graça Fonseca, recusou a descida do IVA incidente sobre a tauromaquia de 13 para 6%, alegando que se trata de uma questão de “civilização”.
Numa entrevista este domingo à TSF e ao Diário de Notícias, Manuel Alegre diz que “não é a ministra que define o que é ou não é civilização. Eu não estou fora da civilização, escrevi poemas sobre touros, o Lorca não está fora, o João Cabral de Melo Neto não está fora, o Ortega y Gasset não está fora, o Goya não está fora, o Picasso não está fora.”
Alegre defende que há “qualquer coisa de sagrado muito antigo” nas touradas e que “quem não percebe isso também não percebe a poesia, não percebe a literatura”.
Alegre já usou muitos argumentos para defender as touradas, mas o argumento literário consegue ser o mais idiota de todos. Porque se usássemos esse mesmo argumento de Alegre, não líamos o que escreve este aspirante a Nobel sobre o assunto, mas líamos o que escreveu o próprio Nobel sobre o assunto.
José Saramago, até ver o único português que convenceu a academia sueca das suas qualidades literárias extraordinárias, escreveu o seguinte sobre as touradas, num texto sobre a ‘España Negra’ de José Gutiérrez Solana:
“O gozo e o disfrute não consistem em matar o animal e distribuir os bifes pelos mais necessitados. […] O gozo e o disfrute têm outro nome. Coberto de sangue, atravessado de lado e lado por lanças, talvez queimado pelas bandarilhas de fogo que no século XVIII se usaram em Portugal, empurrado para o mar para nele perecer afogado, o touro será torturado até à morte”.
“(…) As criancinhas ao colo das mães batem palmas, os maridos, excitados, apalpam as excitadas esposas e, calhando, alguma que não o seja, o povo é feliz enquanto o touro tenta fugir aos seus verdugos deixando atrás de si regueiros de sangue. É atroz, é cruel, é obsceno. Mas isso que importa se Cristiano Ronaldo vai jogar pelo Real Madrid? Que importa isso num momento em que o mundo inteiro chora a morte de Michael Jackson? Que importa que uma cidade faça da tortura premeditada de um animal indefenso uma festa coletiva que se repetirá, implacável, no ano seguinte? É isto cultura? É isto civilização? Ou será antes barbárie?”.
Isto é de quem não percebe de literatura, Dr. Manuel Alegre? Mas o histórico socialista, na entrevista à TSF/DN, vai mais longe nos seus argumentos para nos convencer da bondade de torturar um animal indefeso em nome da arte e da literatura e do gáudio de um amontoado de gente Alegre.
Diz Alegre que “A Guernica é o quadro-símbolo da Guerra Civil de Espanha. Sabem quais são os dois grandes símbolos que lá estão? O cavalo e o toiro. Portanto, cuidado, quando vamos falar de civilização.”
Para Alegre, a representação de um touro num quadro de Picasso legitima as touradas e o sofrimento do animal. Este raciocínio artístico é perigoso: não é por admirar o ‘O Cristo Amarelo’ de Gauguin ou o ‘Cristo Crucificado’ de Velazquez que passarei a defender que se chicoteiem ou se crucifiquem pessoas. Não é por ler e admirar Nabokov que acho que Humbert Humbert e Lolita sejam um exemplo.
Tendo, creio, arrumado o argumento literário, sobra o argumento da democracia e o da arte e da cultura.
Na entrevista, Alegre mostra-se novamente inquieto com o papel do PAN na democracia, como já tinha aliás feito na carta aberta que escreveu a António Costa sobre o tema. Sobre a democracia, já aqui escrevi um artigo com o nome de ‘Por cada Manuel Alegre, há um Touro Triste‘ e que dizia o o seguinte: “Alegre diz que ninguém mandatou o PAN e os outros deputados anti-tourada ‘a reordenarem ou desordenarem a nossa civilização’. Por acaso mandataram. Mandatou quem votou no PAN, no Bloco, nos Verdes, e aqueles que deram o seu voto para que oito deputados socialistas e um social-democrata que votaram a favor da abolição fossem eleitos.”
Sobra o argumento artístico das touradas. Mas aqui não vale a pena escrevinhar o que alguém já escrevinhou melhor do que nós. Leiam Pacheco Pereira este domingo no Público: “As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a ‘arte’ de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio coletivo”.
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