O Doutor Centeno contra o mundo
O Doutor Centeno acha que o mundo inteiro está contra ele. Mesmo que a conjuntura o tenha ajudado nestes três anos como poucas vezes ajudou um ministro das Finanças
Não há entidade independente do governo (seja nacional ou internacional) que, em matéria de política orçamental, não faça, para o período de 2016 a 2019 (além de críticas adicionais que abordarei mais à frente), uma grande crítica a Portugal (algo que eu também tenho procurado aqui e noutros fóruns demonstrar e alertar):
- A consolidação orçamental dos últimos 4 anos é sobretudo conjuntural, apoiada em fatores cíclicos e pontuais.
Há duas semanas foi a Comissão Europeia que foi bastante severa com o plano orçamental apresentado pelo governo em Bruxelas. A Comissão não valida as projeções macro e orçamentais, sobretudo a previsão de crescimento e o défice estimado (quer o nominal, quer o estrutural).
Os números do 3º trimestre mostram já uma desaceleração da economia nacional, seguindo a tendência Europeia. Para chegar ao crescimento de 2.3% em 2018, o 4º trimestre terá de crescer em cadeia 1%. Sendo que o 4º trimestre de 2017, que foi excecionalmente bom, o crescimento em cadeia foi de 0.8%.
Com um crescimento em cadeia no 4º trimestre de 2018 de 0.8%, a economia portuguesa crescerá 2% em 2018. Se tal suceder, então a previsão do governo para o crescimento de 2019 torna-se muito difícil de atingir. Recorde-se que o governo prevê no OE/2019 um crescimento para 2019 de 2.2%. Isto apesar de a maioria das entidades nacionais e internacionais terem previsões de crescimento abaixo dos 2%.
Se a economia portuguesa crescer 2% em 2018, então o crescimento para 2019 será inferior a 1.8%. E o objetivo do PIB nominal (assumindo os deflatores do PIB que constam do OE/2019) para 2019 (209.3 bis) ficará muito longe. Com um crescimento de 2% em 2018 e 1.8% em 2019 (cenário otimista), o PIB nominal será em 2019 de 207.5 bis, ou seja, um desvio face ao objetivo do governo de 1.8 bis. Isso implica um agravamento do défice de 0.3-0.4 p.p. do PIB no mínimo.
Mas as críticas da Comissão Europeia não se ficaram pelas previsões de crescimento. Onde a Comissão é ainda mais crítica é nas previsões orçamentais. A Comissão prevê um défice de 0.6% do PIB (face ao objetivo do governo de 0.2%). A Comissão prevê também que em 2019 não haverá consolidação orçamental estrutural. Ao contrário do governo, que colocou no OE/2019 uma redução do défice estrutural de 0.3 p.p.. Só que a Comissão não crê num conjunto de medidas que não estão especificadas e detalhadas, nomeadamente revisões da despesa e corte nos consumos públicos.
Outra entidade bastante crítica da política orçamental do governo é o Conselho de Finanças Públicas (CFP). Na sua análise preliminar ao cenário macro do OE/2019 já tinham considerado as previsões do governo pouco realistas. O CFP foi bastante duro neste ponto, dizendo que:
- “Desta forma, contrariamente ao disposto na lei de enquadramento orçamental, o cenário macroeconómico subjacente à proposta de lei de Orçamento do Estado para 2019 não pode ser considerado como o cenário mais provável ou um cenário mais prudente”.
Na semana passada, o CFP divulgou o seu relatório sobre o OE/2019. O relatório vai na linha daquilo que referi atrás dito pela Comissão Europeia. Para além de voltar a afirmar que o cenário macro é pouco credível, o CFP é bastante duro na análise que faz à consolidação orçamental. O CFP é claro ao dizer:
- “A melhoria do saldo orçamental continua a depender dos efeitos da conjuntura económica, da redução da despesa com juros, de dividendos a receber do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e da redução dos apoios ao sector financeiro. Os efeitos das medidas que a ação discricionária do decisor político se propõe introduzir em 2019 têm mesmo um contributo negativo (ainda que limitado) para a redução do défice orçamental.”
Tal como tenho dito aqui, a redução do défice em 2019 é totalmente resultante da descida da despesa de juros e do aumento dos dividendos. Todo o “dividendo orçamental” resultante do crescimento económico e da descida do desemprego está a ser usado para aumentar a despesa, sobretudo a corrente primária.
Já quando olhamos para o período 2016-2019, mais de metade da descida do défice resulta desses dois efeitos: redução da despesa com juros e dividendos. Só que a descida da despesa com juros não resulta de menos dívida, resulta de taxas de juro muito baixas por ação do BCE. E os dividendos (e IRC) do Banco de Portugal resulta também do programa do BCE (a compra de dívida pública nacional é feita em 90% pelos bancos centrais nacionais).
A receita do passado, que “tão bons” resultados deu: receita cíclica para pagar neste momento despesa estrutural. Receita que existe este ano e talvez nos próximos 3-4, mas despesa que se vai manter por décadas.
Basta ver que o CFP estima, tal como a Comissão Europeia, que o défice estrutural vai manter-se praticamente inalterado em 2018 e 2019 (o CFP prevê uma redução de 0.2 em 2018 e 0.1 em 2019, bem longe dos 0.6/ano previstos nas regras Europeias).
O CFP chama também a atenção para os atrasos significativos na implementação da nova Lei de Enquadramento Orçamental e na reforma da gestão financeira do setor público. Este OE/2019 deveria ter sido já apresentado com base no disposto na nova LEO (aprovada em 2015). Contudo, o governo pediu, e a maioria no Parlamento aceitou, um adiar da entrada em vigor da nova LEO. Formalmente tudo bem, mas a verdade é que este governo presta muito pouca atenção a essa reforma (e a quase todas). A preocupação da equipa das Finanças neste governo é navegar à vista em termos orçamentais. Aproveitar a conjuntura favorável e os fatores pontuais para ir reduzindo nominalmente o défice. Mas nada de estrutural está a mudar.
Como tenho dito, o Doutor Centeno deixa uma pesada herança ao seu sucessor. O abrandamento da economia e as promessas e decisões tomadas em 2018 e 2019 vão ter um impacto significativo no exercício orçamental de 2012 e anos seguintes. Este ano de 2019 a despesa primária para efeitos das regras Europeias devia crescer 0.7% e vai crescer perto de 2%. Basta ver para 2019 o que diz o CFP:
- “O exercício orçamental de 2019 será ainda onerado pelo significativo contributo negativo para o saldo (-981 M€) decorrente do efeito desfasado (carry-over) de medidas introduzidas em anos anteriores.”
- “No que se refere ao valor de referência (benchmark) para a despesa primária corrigida, o ritmo de ajustamento previsto para 2019 não é compatível com o seu cumprimento”.
Mas isso não preocupa o Doutor Centeno, porque, nessa altura, espera ver o país e ditar críticas ao seu sucessor de uma janela em Bruxelas, ou no Luxemburgo, ou se nada melhor houver, da Rua do Comércio. Isto porque o Doutor Centeno acha que todos os que o criticam estão contra ele. Como são todas as entidades independentes (nacionais e internacionais), o Doutor Centeno acha que o mundo inteiro está contra ele. Mesmo que a conjuntura o tenha ajudado nestes três anos como poucas vezes ajudou um ministro das Finanças.
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