Salvar o SNS da nova Lei de Bases da Saúde

A proposta de Lei de Bases da Saúde privilegia a gestão pública do SNS quando a gestão privada dos hospitais públicos apresenta melhores resultados.

Foi há dias apresentada a nova lei de bases da saúde. Na cerimónia de apresentação, a senhora ministra afirmou: “A proposta de lei é intencionalmente concisa, constituindo o arrimo das opções futuras mas sem espartilhar as soluções a adotar (…) com clara salvaguarda da matriz universal, geral e tendencialmente gratuita do direito à proteção da saúde, primordialmente assegurado por serviços financiados por impostos e com gestão pública”. De seguida, e em crescendo, a ministra rematou: “A proposta que apresentamos é ideologicamente coerente com o que é defendido pelo Governo em termos das funções sociais do Estado: reforço do papel do Estado e Estado como redutor das desigualdades”.

Da intervenção da ministra ficou claro que a nova lei de bases pretende privilegiar a gestão pública dos hospitais do SNS. A afirmação não é minha; é da própria ministra. Dir-se-á: mas a lei em vigor também privilegia a gestão pública. É certo que sim; as PPP não representam mais do que 5% do orçamento total da Saúde. Todavia, a presente lei também encoraja a relação com o sector privado, designadamente através das parceiras público-privadas (PPP). Parcerias essas que, como se vai vendo, não granjeiam grande simpatia junto do Governo.

Sobre as PPP, o exemplo mais simbólico e, ao mesmo tempo, mais representativo é a PPP de Braga. É o exemplo mais simbólico porque o contrato termina em 2019 e está, portanto, para renovação, para novo concurso ou para reversão à gestão pública. E é também o mais representativo porque é a maior PPP na Saúde e aquela que melhores avaliações tem obtido por entidades terceiras. Numa auditoria de 2016, à execução do contrato de PPP em Braga, o Tribunal de Contas (relatório nº24/2016) concluía então que o custo por doente padrão e o financiamento público por doente padrão eram naquele hospital os mais baixos face aos hospitais comparáveis no SNS.

Mas não é só de eficiência económica que temos de falar. Em face do direito constitucional à Saúde, há que falar também do acesso ao serviço prestado aos utentes do SNS. Sobre isto, num outro trabalho realizado pelo TdC em 2017, este sobre a qualidade de acesso a cuidados de saúde no SNS (relatório nº15/2017), aquele órgão resumiu a situação da seguinte forma: “O Tribunal de Contas concluiu que no triénio 2014-2016 ocorreu no Serviço Nacional de Saúde uma degradação do acesso dos utentes a consultas de especialidade hospitalar e à cirurgia programada. Esta degradação traduziu-se:

  1. No aumento do tempo médio de espera para a realização de uma primeira consulta de especialidade hospitalar, de 115 para 121 dias.
  2. No incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos de 25%, em 2014, para 29% em 2016.
  3. No aumento do número de utentes em lista de espera cirúrgica, em 27 mil utentes (+15%).
  4. No aumento do tempo médio de espera até à cirurgia, em 11 dias (+13%),.
  5. No aumento do incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos, de 7,4%, em 2014, para 10,9%, em 2016”.

O Estado representa hoje um duplo problema na saúde. Por um lado, a gestão pública dos hospitais revela uma menor eficiência no aproveitamento dos recursos do que os hospitais de gestão privada. Por outro lado, o Estado, enquanto financiador de todo o sistema, é também quem determina a evolução dos tempos de espera.

O caso da PPP de Braga é paradigmático: no período analisado pelo TdC, o hospital superou a produção estimada no cenário base e também a produção contratada pelo Estado, significando que as listas de espera que também afligem aquele hospital, o mais eficiente entre pares, são responsabilidade do Estado.

Já o afirmei em textos anteriores e volto a repeti-lo: a despesa pública na Saúde representa em Portugal apenas 11/12% de toda a despesa pública, quando na média dos países da OCDE o mesmo rácio é de 15% (e na Alemanha cerca de 20%). Ou seja, em primeiro lugar, é justo reconhecê-lo, faltam recursos. Mas a escassez de recursos não significa que o Estado tenha de assumir a gestão pública dos hospitais. Poderia simplesmente remeter-se ao papel de financiador e regulador do SNS, contratando a gestão dos hospitais junto de privados. O Estado seria tendencialmente financiador, mas não prestador. Infelizmente, a ministra pretende seguir em direcção contrária.

Os relatórios do TdC são concludentes. A gestão privada, entre hospitais comparáveis, tende a superar a gestão pública. Mais: o TdC tem também observado que os critérios de monitorização e de avaliação de qualidade impostos pelo Estado aos hospitais em regime PPP são muito mais exigentes do que aqueles que o mesmo Estado (não) impõe aos restantes hospitais do SNS.

Na verdade, num dos relatórios antes citados (nº15/2017), sobre a gestão pública, o TdC não se coibiu de comentar o seguinte: “As iniciativas centralizadas, desenvolvidas pela Administração Central do Sistema de Saúde, em 2016, de validação e limpeza das listas de espera para primeiras consultas de especialidade hospitalar do universo das unidades hospitalares do SNS, incluíram a eliminação administrativa de pedidos com elevada antiguidade, falseando os indicadores de desempenho reportados. (…) A qualidade da informação disponibilizada publicamente, pela ACSS, IP, sobre as listas de espera não é fiável, devido a falhas recorrentes na integração da informação das unidades hospitalares nos sistemas centralizados de gestão do acesso a consultas hospitalares e cirurgias, bem como devido às iniciativas centralizadas acima referidas”.

Resta apenas acrescentar que, à época, a presidente da ACSS era a actual ministra da Saúde.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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