A obsessão do Banco de Portugal
A regulação e a regulamentação são coisas bem distintas. A segunda deve subjugar-se à primeira e não o contrário. O Banco de Portugal tem de se abrir ao mundo em vez de se fechar sobre si próprio.
Num país onde tanto se fala do bem público, o primeiro e principal bem público que se pode prestar é a informação. Tal justifica-se porque a vida em sociedade é complexa e os cidadãos não têm tempo para estarem a par de tudo o que acontece. É aqui que pode entrar o Estado que, no entanto, é sempre bom realçar, não é um fim em si mesmo. O Estado é uma criação dos indivíduos e representa a acção colectiva dos cidadãos com vista a determinados fins. Um desses fins é a regulação financeira e neste domínio o meio de acção colectiva, de natureza pública, é o Banco de Portugal, além de outras entidades que levam a cabo a regulação financeira em Portugal.
Há dias, o senhor governador do Banco de Portugal foi ao parlamento e sobre as comissões praticadas pelos bancos afirmou várias coisas. Questionado pelos deputados sobre o aumento das comissões bancárias, e sobre a dependência cada vez maior dos bancos face àquelas, o governador afirmou que o “mercado é concorrencial”. De seguida, acrescentou a importância da transparência dos preços, salientando a existência em Portugal de um comparador de comissões bancárias que ajuda o consumidor a escolher entre bancos que praticam diferentes preçários.
Há que destacar a boa e a má prática. A boa prática é a existência de informação sobre os preços praticados pelos bancos, ou seja, a existência de um comparador de comissões bancárias. A má é a desinformação promovida pelo governador quando assevera a natureza concorrencial do mercado. Ora, sobre a primeira, o comparador de preços é um excelente instrumento, de baixo custo, que uma vez estabelecido podia até ser actualizado pelos próprios operadores (e não necessariamente pelo supervisor). O papel do Banco de Portugal é o de criar a plataforma digital e o de supervisionar o rigor da informação lá contida. É uma iniciativa que merece aplauso. Mas quanto à segunda, a dimensão concorrencial do mercado, a questão é mais complexa e merece uma explicação mais longa de desaprovação.
O Banco de Portugal, enquanto supervisor financeiro, tem várias funções. Por um lado, é responsável pelo registo de entidades financeiras. Por outro lado, é responsável pela supervisão micro prudencial e comportamental dos supervisionados. Por fim, é também o detentor da supervisão macro prudencial que, para além dos riscos sistémicos, deve atender à evolução do sistema financeiro em Portugal e às demais adaptações ao nível da própria regulação, incluindo recomendações ao legislador.
Na minha opinião, são funções a mais e é uma pena que no último ano se tenha perdido a oportunidade de reformar a supervisão financeira em Portugal, conforme meu artigo, aqui no ECO, de 1 de novembro de 2017, intitulado “Supervisão financeira: a meio da ponte”.
Portugal está a crescer desde o final de 2013. Desde então, o crescimento nominal do PIB foi superior a 15%. Esta recuperação económica ocorreu ao mesmo tempo que o financiamento à economia diminuiu. O stock total de crédito bancário diminuiu 20%, enquanto o saldo vivo de títulos emitidos por sociedades não financeiras (incluindo títulos de dívida e acções) aumentou pouco mais de 5%. Em termos nominais, avaliado em euros, o financiamento disponível para as empresas sofreu um forte decréscimo num período de forte crescimento económico. Trata-se de uma contradição difícil de entender que, a meu ver, revela a existência de um problema de financiamento em Portugal.
O mercado bancário em Portugal conheceu nos últimos anos uma forte concentração. Temos hoje no nosso país uma banca concentradíssima, na qual os cinco bancos mais relevantes representam mais de 90% do activo bancário total. Compare-se Portugal com os restantes países da zona euro e concluiremos o óbvio: existe um oligopólio. E, portanto, a afirmação do senhor governador não é corroborada pela realidade.
Nestas circunstâncias, certamente na minha opinião, caberia ao Banco de Portugal promover a concorrência no mercado. Isto poderia ser feito através da redução dos montantes mínimos de capital para constituição de entidades bancárias e sociedades financeiras diversas, de regulamentação específica ajustada à dimensão dos operadores, do despacho em tempo útil dos processos de registo e de avaliação de idoneidade dos órgãos sociais, da criação de “sandboxes” regulamentares para experimentação e desenvolvimento de “fintechs”, e de um modo geral através de uma postura pró-activa de abertura do mercado a novos operadores. Infelizmente, não obstante o respeito que as pessoas me merecem, o posicionamento actual do Banco de Portugal encontra-se muito distante daquele que me parece o adequado.
Permanece na instituição do Banco de Portugal uma obsessão com o controlo da concorrência, e não com a sua promoção. Segundo notícia de ontem do ECO, até 22 de dezembro, no âmbito do novo regime de autorização de intermediários de crédito que se tornou obrigatório este ano, o Banco de Portugal recebeu 3.876 pedidos de registo, dos quais foram chumbados 114 e aprovados 820. Da notícia resulta uma coisa óbvia: a grande maioria dos pedidos de registo (cerca de três quartos) encontra-se ainda pendente de apreciação. O mais provável, coisa que a peça do ECO não explora, é que parte desses processos já deverão ter ultrapassado o período máximo concedido ao regulador para apreciação dos mesmos. E aqui está a primeira contradição: temos um regulador que tudo quer controlar, mas que escapa ao seu próprio controlo. A falta de respeito pelos prazos não é novidade em Portugal, mas lamentavelmente é patrocinada ao mais alto nível.
O intermediário de crédito é aquele que facilita a obtenção de crédito, mas que não o concede. Neste segmento de actividade, estão incluídos milhares de pequenos negócios que actuam em parceria com entidades bancárias. Auxiliam os bancos na concessão de todo o tipo de crédito e podemos encontrá-los em lojas de rua, nas grandes superfícies e nos canais digitais. Representam um canal comercial das entidades bancárias, pelo que o dever da sua supervisão deveria recair, em primeiro lugar, sobre os bancos que os contratam ou que com eles estabelecem parcerias.
A nova regulamentação de registo dos intermediários de crédito, longe de evitar a fraude, consegue na verdade introduzir dois custos: um sobre os bancos, que se veem privados de um maior número de parceiros, e outro sobre os consumidores que, como as sondagens de mercado vão revelando, já não querem ir aos balcões dos bancos. Para alguns, o contacto com os intermediários de crédito era a opção entre algum ou nenhum aconselhamento e, para o Banco de Portugal, poderia também ser a diferença entre uma maior ou menor utilização do comparador de comissões.
A concorrência limita-se por via administrativa. O processo de registo é o primeiro travão. Os formulários e deveres de reporte, que se seguem ao registo, são os seguintes. E depois, com o tempo, chegam as exigências organizacionais, desde implementações informáticas a organogramas cada vez mais específicos, para gáudio do burocrata que não tem com que se entreter e que apenas servem para fechar ainda mais o acesso à actividade. Os custos de supervisão avolumam-se e tornam-se incomportáveis para quem está a iniciar actividade. A prazo, o negócio torna-se um de incumbentes e apenas se mantêm no mercado os maiores operadores, reduzindo a concorrência, tornando-se grandes de mais para falir. No dia em que há uma infelicidade, o Estado salva o dia, mas aos problemas de concorrência e de supervisão juntam-se outro dois: o custo para o erário público e a desconfiança dos cidadãos.
A submissão das intermediárias de crédito a processo de registo, ou a sua passagem à ilegalidade, representa uma abordagem extensiva e excessiva da regulação financeira. É uma via burocratizante – uma avenida de muita regulamentação, mas de pouca regulação – que projecta uma aparência de controlo, mas não mais do que isso. O Banco de Portugal está a desperdiçar os seus recursos e os seus talentos.
Numa altura em que as tendências do sector apontam para a digitalização, para a desintermediação e para novas formas de financiamento, numa altura em que as licenças bancárias começam a ser atribuídas a empresas não bancárias, a abordagem do regulador afigura-se-me anacrónica. Afigura-se-me igualmente influenciada pela tentativa de se substituir aos regulados, de os gerir a partir da Almirante de Reis. Ora, a função do regulador é a de definir as grandes fronteiras, definir o que se não pode fazer. Isto é regulação. Mas o que o regulador em Portugal nos propõe é regulamentação, indicando a todos, mesmo àqueles que não deveriam estar sobre a sua alçada, o que devem fazer e como o devem fazer.
A regulação e a regulamentação são coisas bem distintas. A segunda deve subjugar-se à primeira e não o contrário. Assim, o Banco de Portugal, que recomenda o legislador nestas matérias, tem de se abrir ao mundo, em vez de se fechar sobre si próprio.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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