Estado fiscal de devassa

Não está em causa o combate à evasão fiscal, mas sim o equilíbrio entre a esfera individual e privada dos cidadãos e a acção pública e colectiva exercida através do Estado.

O Estado prepara-se para ter acesso aos saldos bancários dos cidadãos portugueses. É esta devassa que resultará do projecto de lei do Governo que, há dias, foi discutido e aprovado na Comissão Permanente do Orçamento e das Finanças da Assembleia da República.

Nesta fase, o acesso estatal à esfera financeira privada dos cidadãos aplicar-se-á apenas a contas com saldos superiores a cinquenta mil euros e somente aos saldos reportados a 31 de Dezembro de cada ano. Mas já sabemos como estas coisas começam. Primeiro, entra-se de mansinho e depois é a matar. É como os impostos: uma vez implementados, eles são quase sempre aumentados e quase nunca diminuídos. No caso da devassa do Estado sobre os saldos bancários, através da Autoridade Tributária, a minha aposta é que nos próximos anos o limite de acesso será sempre a descer e o número de acessos sempre a aumentar. A ver vamos.

Cada período histórico é influenciado pelas circunstâncias que o afligem. São essas circunstâncias que motivam as caças às bruxas. Que levam aos exageros. Assim, nos últimos anos, a sociedade portuguesa foi afligida pelo fenómeno da corrupção e do crime de colarinho branco. Não é um fenómeno exclusivamente português, mas em Portugal tem-se feito sentir de forma intensa.

No espaço de poucos anos, generalizou-se na opinião pública a ideia de que a corrupção, a evasão fiscal e o enriquecimento ilícito se tornaram a regra. Mas, na verdade, e ainda bem que assim é, aqueles crimes continuam a ser a excepção e não a regra. A generalidade do povo português não está acusada de coisa alguma e, em geral, os portugueses são pessoas decentes e cumpridores das leis. Lamentavelmente, uma parte crescente das leis que se vão aprovando no País partem do pressuposto contrário: do pressuposto de que a maioria dos cidadãos são potenciais criminosos ao virar da esquina.

Nunca é de mais recordar que numa democracia o Estado está ao serviço dos cidadãos. Ele é uma criação dos cidadãos que, através do Estado, encontram um meio de acção comum para realizarem determinados fins. Ora, o combate à evasão fiscal é um fim legítimo da sociedade. Assim é, porque quanto maior for a evasão fiscal maior será a injustiça tributária, aqui interpretada como a proporção em excesso de impostos cujo pagamento caberá aos contribuintes cumpridores para suprir a falta dos incumpridores. Deste modo, todos os mecanismos de eficiência fiscal, ou seja, que tornam a cobrança de impostos mais eficaz a fim de eliminar a injustiça tributária (conforme definida antes) são aceitáveis e, em princípio, bem-vindos. Aqui incluo os mecanismos de retenção na fonte que incidem sobre rendimentos de capitais e do trabalho, bem como outros mecanismos tornados possíveis pela tecnologia, desde que sob certas condições.

A questão dos meios digitais é, de resto, cada vez mais relevante em matérias de eficiência fiscal. O e-factura em Portugal é um exemplo paradigmático. Ele possibilita ao fisco a obtenção de informação mais regular e mais rigorosa relativamente a transacções comerciais entre agentes económicos, mas não acarreta necessariamente a invasão da privacidade do consumidor. A razão é que o consumidor, devendo pedir factura (e tendo o comerciante a obrigação de a emitir), não é obrigado a dar o seu número de contribuinte. Ele fornece os dados que entender. O direito de reserva à privacidade do consumidor é, assim, preservado na medida das suas próprias decisões.

De igual modo, também o acesso do fisco aos fluxos de pagamento gerados a partir de cartões de débito e de crédito preserva a mesma salvaguarda de privacidade, porque a identidade dos mandantes dos pagamentos não tem de ser comunicada. Aqui estão, portanto, dois mecanismos concretos que tornam a acção do fisco mais eficiente, tornando-o também mais eficaz no combate à evasão fiscal, e que são perfeitamente aceitáveis.

A questão da privacidade é fundamental. Ela está, aliás, constitucionalmente definida através do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa (CRP), sendo que as leis constitucionais servem precisamente para delimitar a acção do Estado. É ler ou reler Madison (cuja leitura recomendo fervorosamente a alguns constitucionalistas que por aí andam) sobre o conceito de “limited government” e rapidamente se concluirá pela falta de razoabilidade do acesso do fisco às contas bancárias de pessoas decentes e cumpridoras.

Sobre isto, e para arrumar eventuais pretextos, pouco me importa que o projecto de lei esteja inspirado numa directiva europeia.

  • Primeiro, porque a directiva europeia apenas se aplica aos cidadãos não-residentes, sendo assim indevida a sua aplicação aos residentes. O argumento da transposição é, pois, falso.
  • Segundo, porque mesmo para não-residentes ela me parece excessiva. Recorde-se que as transferências realizadas para “offshores”, ou para jurisdições com regimes fiscais privilegiados, já têm obrigatoriamente de ser comunicadas ao fisco. E relembre-se também que o sigilo bancário pode ser levantado mediante suspeita de ilicitude e/ou de situação tributária irregular.

Sem prejuízo do exercício de responsabilização e de punição que a fraude deve encetar, sem hesitações, os abusos de uns não podem justificar a presunção de culpa sobre todos os outros. Porque, se assim começar a ser, não tardará muito até que seja instituído (democraticamente!) o Estado policial em Portugal. Não é exagero. Há princípios que uma vez quebrados abrem o caminho para todo o tipo de abusos.

A devassa do Estado sobre a vida privada de cidadãos cumpridores é um desses abusos. Não é uma questão de grau, é mesmo de princípio. Que o legislador e o Presidente da República não entendam isto, numa matéria à qual nenhum compromisso internacional os vincula, é para mim motivo de manifesta incompreensão.

Não está em causa o combate à evasão fiscal, mas sim o equilíbrio entre a esfera individual e privada dos cidadãos e a acção pública e colectiva exercida através do Estado. Está em causa o equilíbrio entre os meios e os fins que a sociedade se propõe alcançar, sendo que num Estado de direito os fins não justificam os meios. Infelizmente, perdeu-se a bússola.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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