A Casa Branca
Os Estados Unidos da América não se reconhecem enquanto potência reguladora – são tipicamente um império em negação. E na negação reside a explicação para todas as hesitações e todos os erros.
A teoria da culpa não domina o último capítulo da História da América. No ensaio intitulado “The Chatham House Version”, Elie Kedourie critica o tom e a atitude de Arnold Toynbee. Em “A Study of History”, Toynbee teria adoptado um estilo indignado e radical. Um estilo muito particular, impulsionado pela mais vibrante emoção auto-acusatória. Um estilo muito peculiar, marcado pela mais comovente emoção e pelo indisfarçável júbilo da lamentação – “Nostra culpa, Nostra maxima culpa”. De acordo com Elie Kedourie, esta atitude explicaria a permanente distorção observável na visão histórica de Toynbee, distorção detectável de um modo mais evidente quando o olhar do historiador se fixava na suposta natureza da civilização Ocidental. Para Arnold Toynbee, o Ocidente seria o eterno e perpétuo agressor.
Muitos comentadores no Ocidente acreditam na doutrina da América como o perpétuo agressor. Em conformidade, desenvolveram uma teoria da culpa, que aliás integra o mesmo compacto emocional adoptado por Arnold Toynbee. Mas não deixa de ser uma estranha forma de culpa. A expiação do delito recorre à convocação de uma superioridade moral, espécie de potência redentora, e adopta um discurso agressivo e virtuoso, que declara à eternidade o peso insuportável da culpa. Mas a doutrina pode revelar-se perversa. Na intenção quase delirante de apaziguar a consciência, reconhece na História a infinita agressão de uma força impessoal e violenta. Uma visão simples e linear, uma visão primitiva e moralmente cega, uma visão que procura na História o conforto para uma existência livre de angústias.
No ensaio intitulado “On the Use and Abuse of History for Life”, Friedrich Nietzsche reflecte precisamente sobre a importância da explicação histórica no equilíbrio político da existência humana. Para o filósofo, a visão “Monumental” da História cativa pelo recurso à analogia, cativa sobretudo pela tentação das semelhanças. Nesta perspectiva, a coragem pode levar à imprudência e o entusiasmo ao fanatismo. É o tipo de História em que a frase “Never Forget” se transforma num monumento, num enorme edifício que oculta tudo o que realmente deveria ser lembrado. Já a visão do “Antiquário”, perseguindo o passado no seu mais ínfimo detalhe, perde subitamente a complexa noção do conjunto. Incapaz de distinguir o importante do acessório, cede à tentação e à apologia do passado, rejeitando tudo o que vagamente se apresenta como novo. Finalmente, a visão “Crítica” surge pela necessidade de contornar as perspectivas anteriores. O seu propósito seria então o de dissolver uma particular interpretação de modo a viabilizar a continuidade da existência humana. Mas se a visão “Crítica” produz uma explicação histórica que permite a continuidade e o futuro, produz igualmente a séria possibilidade de se perder o sentido ou a lição da História. Pela aplicação da tipologia de Nietzsche, a teoria da culpa pertence ao universo da História «Monumental». Uma teoria que ao evocar uma versão conveniente dos acontecimentos, ilude e elimina os extremos de uma realidade complexa, remetendo para a inexistência o colossal e desconcertante edifício da civilização Ocidental.
A América não elabora a partir de um qualquer estado de alma, não promove a mínima especulação sobre uma hipotética teoria da culpa, mas ao aplicar-se a classificação de Nietzsche, a América assume uma visão “Monumental” do seu papel no mundo contemporâneo, quer na interpretação do passado, quer na projecção de um futuro possível.
Na visão do mundo a partir da Casa Branca, a dissolução formal do Império Soviético, a ascensão da China e a prática universal da auto-determinação, não terão promovido a ordem no mundo, nem a prosperidade, nem a justiça. Dito de outro modo, o projecto liberal terá falhado de uma forma tão evidente quanto clamorosa. Por outro lado, e para alguns países, a independência formal terá constituído o ponto crítico a partir do qual todos os problemas se teriam agravado. Nesta perspectiva, um qualquer tipo de administração internacional, com a suspensão total ou parcial da soberania, poderia ser bem mais irracional do que o actual modelo de nação irreversivelmente soberana. A América não identifica na desordem vigente no mundo a necessidade de uma potência reguladora, mas observa a urgência de uma potência dominadora. O paradoxo reside no facto da América reunir todas as condições para o exercício e a função da potência reguladora no sistema de relações internacionais.
Os Estados Unidos da América não se reconhecem enquanto potência reguladora – são tipicamente um império em negação. E na negação reside a explicação para todas as hesitações e todos os erros. A esta negação associa-se um défice orçamental, um défice de atenção e um défice humano, relacionado este último com a ausência de um ethos civilizador – a indisponibilidade para trocar o progresso da metrópole pelo dever moral associado à influência política e à estabilização económica. Como tal, a grande ameaça que os Estados Unidos da América enfrentam terá uma origem e uma natureza internas, e resulta sobretudo do efeito combinado de uma negação e de um défice. Défice e negação que poderão hipotecar seriamente o exercício de um poder regulador na afirmação de um novo e global império da liberdade.
Para alguns comentadores, a Casa Branca deveria então orientar a sua acção no mundo para a organização e gestão de um império liberal – viabilizando a economia de mercado e estabelecendo as instituições necessárias ao funcionamento de regimes democráticos estáveis. E sempre que necessário, não deveria hesitar na utilização do poder militar. A alternativa a este império liberal, ou adoptando uma outra terminologia, a alternativa a um mundo unipolar, não seria então a competição multipolar ou a utopia do entendimento universal, mas sim a proliferação da anarquia e do caos.
Tal como Machiavelli parecia acreditar na restauração de uma forma política próxima ou similar à da Roma Antiga, o mundo de hoje não tem paralelo com o mundo do século XX. E o conceito de nação indispensável deixou de fazer sentido no Ocidente. Deixou de fazer sentido no mundo. A análise parece centrar-se numa visão e numa perspectiva estritamente ocidentais, iludindo completamente a existência de um mundo para além das fronteiras do Ocidente. O poder e a potência do “Outro”, da China, sujeito de uma vontade política e não apenas “objecto”, colocam em causa a possibilidade de um império liberal de acordo com o modelo enunciado. Mesmo na sua concretização mais benigna, o império liberal concentraria sobre si a atenção e a acção de um exército global de libertação. Assim, o que parece restar é o impasse ou o esplendor da incerteza.
A América é dominada por uma certa ideia de “hubris” – o carácter orgulhoso de um projecto político que, ao ignorar os avisos do passado, resulta inexoravelmente na retribuição e na queda. Em Heart of Dearkness, Joseph Conrad fala de um rio, de um rio calmo e tranquilo no declínio do dia: “What greatness had not floated on the ebb of that river into the mystery of an unknown earth! … The dreams of men, the seeds of commonwealths, the germs of empires…”.
Da Casa Branca observa-se a desolação que repousa sobre as margens. E observa-se sem consciência de que na História, o esplendor e a miséria são estados transientes, inconfundíveis na aparência, mas demasiado próximos na matéria humana de que são feitos.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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