Já ficámos sem assunto? Já somos prósperos e felizes?
Partidos estão com falta de assunto. Uns estão deslumbrados com sucessos que nem eles previam e os outros estão desanimados com a dificuldade de definir um novo posicionamento e escrever um guião.
Quem tenha caído de pára-quedas na política portuguesa nas últimas semanas pode ser tentado a pensar que chegámos ao nosso “fim da História”. Derrubado o Muro de Berlim parlamentar que existia desde 1975, trazidos os partidos da extrema-esquerda para o arco do poder executivo e tendo isso ocorrido sem acidentes graves, o que se segue é a gestão da “mercearia”, umas vezes por entendimentos entre a esquerda, outras por entendimentos entre a direita e pouco mais restará em opções de fundo.
A crise do PSD é, aliás, filha deste fim de ciclo e representa a outra face do sucesso político desta solução governativa. Não só o governo do PS cumprirá a legislatura – é a segunda vez na história da democracia que um governo sem apoio parlamentar maioritário cumpre os quatro anos de mandato; a primeira e última foi há 20 anos, entre 1995-1999, com António Guterres – como o apoio do PCP e do BE a quatro Orçamentos do Estado foi compatível com o cumprimento do Tratado Orçamental e das metas acordadas com Bruxelas, indo-se até “para além da troika” à custa de fortes cortes na despesa corrente e de investimento e da maior carga fiscal de sempre.
Isto é o que se vê à superfície: terminou o ciclo da reposição de rendimentos que começaram a ser cortados em 2010, acabou a emergência orçamental, a economia está a crescer, o desemprego está a cair, já se distribui dinheiro aqui e ali, os juros historicamente baixos ajudam e anunciam-se, pela enésima vez, milhares de milhões em programas de obras públicas, algumas naturalmente mais necessárias e urgentes do que outras, mas tudo para eleitor ver.
O PS pensa ter conseguido lavar a cara da bancarrota e libertar-se do rótulo da irresponsabilidade financeira e orçamental com que terminou a anterior experiência governativa liderada por José Sócrates e o PSD viu-se, de repente, sem esse factor diferenciador que lhe permitia empunhar a bandeira da responsabilidade e da coragem para tomar medidas duras quando elas são necessárias.
E todos parecem estar com falta de assunto. Uns, porque estão deslumbrados com sucessos e facilidades que nem eles previam e os outros estão desanimados com a dificuldade de definir um novo posicionamento e escrever um guião.
Mas assunto é coisa que não falta no país. Basta afastarmo-nos um pouco para ganhar uma perspectiva mais ampla e ver o que tem sido este nosso século XXI. Onde estávamos em 2000 e onde estamos agora? (os dados utilizados são da Pordata (www.pordata.pt), excepto os referentes à carga fiscal, que foram retirados directamente do INE (www.ine.pt). O período considerado é entre 2000 e 2017).
O que temos há pelo menos duas décadas em Portugal é um modelo de subdesenvolvimento permanente que nos vai levando cada vez mais para o fundo, cada vez mais longe dos padrões europeus, cada vez mais para o fundo das tabelas, cada vez mais pobres, mais irrelevantes, mais “remediadozinhos”.
Desde o ano 2000, o crescimento médio anual do PIB português foi de uns míseros 0,6%. Enquanto isso, a UE28 cresceu, em média, 1,55% por ano. Ah, já sei. O problema é o euro e o espartilho que coloca às economias. Será? A zona euro cresceu 1,32% no mesmo período, mais do dobro de Portugal. Não foi o euro e a crise financeira que abalou particularmente alguns países periféricos. Vejamos então:
- Crescimento médio anual de Espanha este século: 1,86%.
- Crescimento médio anual da Irlanda este século: 5,16%.
- Assim, não admira que o nosso PIB per capita tenha caído de 83% da média da UE28 para 77%.
- Com a remuneração dos empregados per capita a divergência foi ainda maior: passou de 84% para 72%.
- A produtividade manteve-se próxima dos 66,5%, com uma irrelevante queda de duas décimas, o que só por si é preocupante porque se esta é a “mãe” do desenvolvimento e da prosperidade, enquanto não nos aproximarmos dos padrões dos nossos parceiros não vamos fazer a convergência real.
- Nas contas públicas, a carga fiscal passou de 31,1% do PIB para 34,7%.
- Apesar disso, em 2000 tínhamos uma dívida do Estado de 50,3% do PIB e em 2017 estava em 124,7%. É verdade que as dívidas subiram em toda a Europa, mas repare-se na diferença de amplitudes: na UE28 o salto foi de 60% para 81,3%, nada que se compare com o disparo de 2,5 vezes que teve em Portugal.
Vamos lá enfrentar: O que temos há pelo menos duas décadas em Portugal é um modelo de subdesenvolvimento permanente que nos vai levando cada vez mais para o fundo, cada vez mais longe dos padrões europeus, cada vez mais para o fundo das tabelas, cada vez mais pobres, mais irrelevantes, mais “remediadozinhos”.
Mesmo em fases do ciclo em que isso não é evidente, como a actual, o certo é que nos períodos de crescimento não temos conseguido repor as quedas anteriores. Além disso, o mundo não pára e mesmo quando nós damos um passo em frente, há quem dê dois ou três.
Olhe-se para além das guerrinhas partidárias do “a culpa é tua. Não, é tua”, dos alibis que as regras europeias permitem, das crises internacionais que afinal só afectam dramaticamente alguns enquanto outros seguem o seu caminho, das trincheiras ideológicas que ignoram tantas vezes os factos. Saídos de mais um buraco, aquele onde caímos há uma década, temos ainda quase tudo por fazer.
Claro que também há indicadores económicos e sociais positivos neste período. A escolaridade média aumentou, o país tem hoje estradas e infraestruturas físicas em qualidade e quantidade (até excessiva, nalguns casos, o que nos custou e custa recursos), começou a falar-se e a praticar-se o empreendedorismo, a marca turística afirmou-se e globalizou-se, o peso das exportações no PIB aumentou.
Mas isto devem ser meios para atingir fins, não são fins em si mesmos. Se não conseguirmos converter uma população com mais escolaridade e melhores estradas e polidesportivos municipais em crescimento, criação de riqueza, prosperidade e bem estar colectivo, então o modelo falha.
O modelo – ou seja lá o que nós temos, porque me parece demasiado ambicioso pretender que temos um “modelo” – não funciona e duvida-se que alguma vez tenha funcionado. Os períodos de forte crescimento e convergência europeia que tivemos – segunda metade da década de 80 e quase toda a década de 90, embora interrompida por uma recessão – foram provocados sobretudo por choques positivos impostos pelo exterior: abertura da economia, fim de algum proteccionismo, rios de dinheiro de fundos comunitários, convergência nominal de Maastricht e respectivo bónus de crédito barato e abundante.
Mesmo o recente aumento das exportações foi uma consequência indirecta da crise e do corte de rendimentos que provocou: com o mercado interno em forte queda, muitos empresários tiveram que fazer-se à vida e ir procurar negócio lá fora para sobreviverem. Mas já o podiam ter feito há muito, se não estivessem acomodados num mercado nacional alimentado pelo endividamento fácil, por rendas garantidas pelo Estado ou por monopólios.
O certo é que tudo isto está ausente do debate, da discussão, das iniciativas partidárias, das propostas políticas concorrentes. Nos últimos anos o país entreteve-se a discutir o Estado, os impostos a aumentar para repor rendimentos ou distribuir aqui e ali e as reivindicações concretas de algumas corporações. Satisfeitas ou caladas estas, chegámos ao fim da linha, ao modelo acabado que agora basta gerir no ambiente que a conjuntura externa nos trouxer.
Nada de mais enganador. Já vamos com duas décadas perdidas. Outras se seguirão de mediocridade semelhante se insistirmos em ficar todos contentinhos apenas porque não há nova bancarrota ou uma recessão das que dói.
Que os principais partidos não vejam no nosso percurso matéria que os preocupe, que os inquiete e os leve a apresentar caminhos mais ou menos diferenciados para sair do imenso pântano onde estamos metidos, só reforça que estamos na pior das enrascadas: aquele em que nem sabemos identificar uma porta de saída viável.
Então, ainda achamos que ficámos sem assunto?
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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