Justiça mais justa ou apenas mais popular?
O estado da Justiça criminal não se pode só medir pelo número de inquéritos abertos, arguidos constituídos ou acusações proferidas pelo Ministério Público em processos ditos mediáticos.
O grande legado que muitos consideram ter a anterior PGR Joana Marques Vidal deixado ao país foi o “fim da impunidade”. Dizem que Portugal se tornou mais justo, porque protagonistas dos mais variados poderes passaram a prestar contas na Justiça. Com isso, Marques Vidal passou de uma ilustre magistrada reconhecida pela sua discrição e competência, para uma pessoa sobre a qual se gerou um culto da personalidade tremendo, tornando-se demasiado exposta a múltiplas agendas mediáticas e políticas. Isso ficou evidente na novela que se gerou em torno da sua recondução ou não como PGR, como se o combate à corrupção em Portugal dependesse desta, e só desta pessoa, e os órgãos de soberania democraticamente eleitos não tivessem liberdade de escolha.
Depois da crise era preciso comunicar aos portugueses os “culpados” e o Ministério Público entendeu muito bem o estado de espírito do país. Mais do que melhorar, verdadeiramente, o funcionamento da Justiça criminal, tornou-se prioritário melhorar a comunicação do Ministério Público, criando uma sensação de omnipresença desta magistratura e de que se estava a operar uma espécie de limpeza moral da sociedade liderada pela PGR. Com isso ganhou-se alarido judicial, mas tem-se perdido objetividade e rigor jurídico (como, aliás, tem sido apontado por algumas decisões judiciais recentes). A cada diligência processual num processo mediático, o Ministério Público passou a fazer uma “Nota para a Comunicação Social ” com as suas conclusões irrefutáveis de culpabilidade dos visados, transformando acusações em sentenças finais; a cada contacto de um jornalista sobre uma qualquer polémica pública, a assessoria de imprensa da PGR passou a anunciar a abertura de um inquérito (mesmo sem muitas vezes se vislumbrar indícios criminais). Mas esta é a comunicação tolerada pela Lei. A mais nefasta de todas para o Estado de Direito é comunicação obscura e ilegal com que todos somos confrontados diariamente. Aquela que leva jornalistas a acompanhar buscas a casa dos visados; aquela que tem o processo em segredo de justiça para os advogados defensores, mas comunica pela “porta do cavalo” aos jornalistas do costume as teses dos acusadores, mesmo que ainda estejam por comprovar; aquela que expõe interrogatórios de cidadãos em prime time nas televisões com o intuito de os humilhar irremediavelmente. Neste campo, curiosamente, a impunidade – muito conveniente para alguns – nunca deixou de reinar, não obstante ser uma criminalidade, seguramente, muito mais fácil de investigar do que a grande criminalidade económico-financeira.
Banalizou-se o processo penal e a condição de arguido. Generalizou-se a suspeição. Têm sido demasiadas as pessoas e instituições a serem colocadas pelo Ministério Público sob suspeição pública durante anos a fio e que depois são, por decisões corajosas, absolvidas. Ninguém se choca, porque se diz que a Justiça se faz em julgamento. Discordo. A Justiça faz-se em todas as fases de um processo e a devassa da privacidade e imputação de crimes graves a uma pessoa mesmo que, por falta de provas, ela venha anos depois a ser absolvida, é uma doença crónica que jamais ficará curada.
O estado da Justiça criminal não se pode só medir pelo número de inquéritos abertos, arguidos constituídos ou acusações proferidas pelo Ministério Público em processos ditos mediáticos. Isso é um capítulo mínimo num sistema de Justiça cuja eficácia e competência se mede por múltiplas variáveis e que raramente merecem atenção mediática.
Estamos ainda longe de saber se o legado da anterior PGR foi o de tornar a Justiça mais justa ou apenas mais popular.
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