Os sujeitos passivos da Caixa

O espantoso aumento da carga fiscal, nos últimos 40 anos transformou profundamente a sociedade portuguesa e a perceção que os cidadãos têm sobre os assuntos do Estado.

Uma das transformações mais profundas que ocorreu na sociedade portuguesa no período democrático foi o extraordinário aumento da carga fiscal. Os impostos irromperam pela vida das pessoas e passaram a fazer parte do seu quotidiano.

A tributação sobre a massa salarial foi de 41% em 2017, em Portugal, segundo dados da OCDE acerca do Tax Wedge, somando apenas os impostos e as contribuições para a Segurança Social que sobre eles incidem. O rendimento que resta a cada trabalhador serve ainda para suportar o IVA, cuja taxa média é de 18%, (dados publicados pela AT) o ISP, o IMI, o IUC e os restantes impostos que um português médio paga.

Tudo somado, a carga fiscal sobre o trabalho ultrapassa largamente os 50% da massa salarial paga pelas entidades patronais. Como se trata de uma média do universo dos trabalhadores dependentes portugueses, isso significa que para muitos de nós essa carga fiscal se aproximará, ou ultrapassará até, os 70%.

Em termos gerais, o nível de fiscalidade mais do que duplicou no Portugal democrático, segundo a OCDE. Nos Estados Unidos, um estudo do Tax Foundation, recentemente divulgado, revela que o total dos impostos suportados por cada agregado familiar é superior à soma das suas despesas em alimentação, habitação e vestuário. Os impostos fazem parte da vida de todos nós.

Por que motivo aceitamos que o Estado nos leve mais de metade daquilo que produzimos com o nosso trabalho e o nosso esforço? Essa pergunta deveria estar permanentemente presente na consciência dos que administram o dinheiro dos contribuintes.

John Rawls responde que é o nosso sentido de justiça e de solidariedade que nos induz a partilhar com os outros aquilo que é nosso. E o mesmo diz a nossa Constituição: Os impostos que pagamos servem para promover uma justa distribuição do rendimento e da riqueza.

Aceitamos que os impostos representem a parte mais importante das despesas das nossas famílias em nome de um contrato social, assente no princípio de justiça, que é o fundamento da nossa comunidade. Esse contrato assenta num conjunto de contrapartidas, como ocorre em todos os contratos, que são a de vivermos numa sociedade civilizada, solidária, organizada, segura e com níveis de prosperidade aceitáveis.

A importância deste contrato, como de todos os outros, depende do preço que nos cabe pagar. E como esse preço aumentou extraordinariamente nos últimos anos, essa importância é agora muito grande. O espantoso aumento da carga fiscal, nos últimos 40 anos, transformou profundamente a sociedade portuguesa e a perceção que os cidadãos têm sobre os assuntos do Estado.

Há uma sociedade portuguesa antes e outra depois dessa transformação. E um dos domínios em que mais se expressa essa diferença está naquilo que os cidadãos exigem do Estado e dos seus mandatários políticos. Esse nível deixou de ser uma quase inexistência e é agora um estado permanente de atenção, escrutínio e exigência. De cidadania, no final de contas.

Esta transformação parece que não foi ainda compreendida por muitos de nós, em especial por aqueles a quem os cidadãos confiam a administração dos seus impostos.

Essa incompreensão e a falta de correspondência da elite a essa exigência geram revolta, que por agora se traduz em resultados eleitorais que estranhamos.

Já foram dadas as mais diversas explicações para esses resultados, que se desdobram à medida que a realidade as desmente, desde a crise, ao terrorismo, à imigração, ao pacto orçamental, à globalização, à robotização e à desigualdade. Mas o que explica esses resultados é esse mau estar que teimamos em não compreender.

O resgate da Caixa, e afinal de toda a banca portuguesa, com o dinheiro dos contribuintes nunca deveria ter acontecido, apesar de eventualmente ter sido inevitável, sem que, em contrapartida, o Estado garantisse previamente um tributo de verdade e de transparência aos contribuintes.

José Maria Pires

O que está em causa é a impreparação da classe política e dirigente para corresponder a esse alto nível de exigência que os cidadãos contribuintes alcançaram, tão alto como os impostos que pagam. E quando assim é, o que está em causa é a busca de toda uma nova classe política.

O episódio da divulgação do relatório de auditoria à CGD revela que a nossa elite financeira e dirigente continua a não compreender esta mudança. Não compreenderam no passado aqueles que, com aparente desprezo pelo dinheiro dos contribuintes, colocaram um banco que é deles a praticar operações aparentemente ruinosas. Nem quando, no Governo, incumpriram os seus deveres de controlo acionista, que permitiram que isso acontecesse continuadamente.

Mas continuam a não compreender quando colocaram a pagar, por essa sua falta, todos e cada um dos portugueses. A lista de devedores da Caixa é a lista daqueles para quem, no final de contas, o Estado transferiu os impostos pagos por todos nós. Ou seja, efetuando uma transferência de riqueza em sentido contrário ao estabelecido pela Constituição.

O resgate da Caixa, e afinal de toda a banca portuguesa, com o dinheiro dos contribuintes nunca deveria ter acontecido, apesar de eventualmente ter sido inevitável, sem que, em contrapartida, o Estado garantisse previamente um tributo de verdade e de transparência aos contribuintes. E esse tributo inclui a determinação dos responsáveis, dos beneficiários e a exigência da recuperação dos créditos em dívida com um rigor que, no mínimo, dever ser igual àquele que o Estado utiliza a cobrar os impostos aos mesmos cidadãos. Só assim se tornaria aceitável a utilização do sistema fiscal para fins que não são os seus e que, por isso, violam o contrato social.

Não é apenas o conhecimento do relatório de auditoria à Caixa que está em causa, mas a prevalência dos interesses dos contribuintes sobre aqueles para quem foi o seu dinheiro, que está por fazer. Isso mostra como os responsáveis públicos continuam a não compreender como a sociedade portuguesa mudou.

Essa incompreensão resulta da falta de cultura fiscal em Portugal, em especial nas nossas elites, para quem os impostos sempre foram coisa menor, desagradável que as pessoas pagam e depois esquecem.

Somos sujeitos passivos dos impostos que pagamos, mas isso não faz de nós cidadãos passivos, ao contrário do que alguns pensarão. Pelo contrário, torna-nos credores de um direito de cidadania de que somos cada vez mais conscientes. E exigentes. E estamos todos cada vez mais conscientes disso.

Dizia Rawls na sua Teoria da Justiça, que as desigualdades só são aceitáveis quando trazem um maior benefício para os mais desfavorecidos. E que é esse o único sentido de uma distribuição justa da riqueza. O contrário traz incompreensão. E como diz Piketty, “no coração de cada reviravolta política importante encontramos uma revolução fiscal”.

Nota: Os artigos do autor exprimem apenas a sua opinião pessoal.

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