Venezuela e a miséria de Bolívar

A Venezuela caminha para a anarquia e o colapso e contamina a região com a incerteza e a exportação dos problemas políticos de um Estado falhado.

Em Caracas, um enorme mural de Chávez. Ao lado, um enorme mural de Bolívar. Marx odiava Bolívar, “um cobarde, mais miserável e mais mesquinho do que um guarda-costas”. O “Washington da América Latina” travou uma “guerra até à morte”, uma guerra de libertação que espalhou o terror no Continente e o modelo para a típica violência que haveria de ligar em irmandade todos os povos da região. O compromisso de Bolívar com a liberdade e a democracia era temperado pela desconfiança. Sobre a nova democracia na América do Norte, Bolívar acreditava que só poderia trazer “ruína numa região marcada pela crueldade, ambição, maldade e ganância”. O modelo constitucional bolivariano exigia um Presidente vitalício e um regime em que os líderes estão acima da lei e os interesses soberanos estão acima dos princípios. Bolívar deixou seguidores na Venezuela.

A Revolução Bolivariana é o exemplo anacrónico de um socialismo do terceiro-mundo que confisca em regime de monopólio a voz dos mais pobres, nacionaliza os bens da nação e os negócios privados, contrai empréstimos para aumentar a despesa pública, impõe um regime de preços controlados, coloca à frente das empresas públicas dirigentes de confiança política, asfixia todo e qualquer mecanismo associado ao funcionamento livre de uma economia de mercado. A jóia do regime, a companhia estatal de petróleo, PDVSA, alimenta a espiral de subsídios, o internacionalismo solidário com Cuba, a propaganda do Governo, o bolívar artificialmente alto e a eliminação de todas as tendências políticas críticas, dissidentes, democráticas. Dirigida por um Major-General fiel ao regime, a empresa está hoje em default parcial, tendo uma produção actual idêntica à verificada na década de 1950. E o Estado venezuelano evita o default completo hipotecando os campos de petróleo, gás e ouro a firmas controladas pelos Governos da China e da Rússia.

Entre a hiperinflacção, a ditadura do mercado negro e as mafias informais, a Venezuela caminha para a anarquia e o colapso e contamina a região com a incerteza e a exportação dos problemas políticos de um Estado falhado. A miséria, a corrupção, o desemprego, a violência, dominam a sociedade venezuelana, um país com índices de produtividade só registados nos anos 20 do século passado. Os refugiados dirigem-se em todas as direcções em busca do essencial que suporta a sobrevivência e a dignidade humanas.

Com a indústria da pesca destruída pelo Chavismo, os antigos pescadores convertem-se nos novos piratas que patrulham, roubam e raptam, com total impunidade, pelo Mar das Caraíbas. Mas estes não estão sós. Grupos compostos por membros da Guarda Nacional Bolivariana alimentam um comércio ilegal de marijuana, heroína e cocaína, saturando ainda a zona com uma oferta inesgotável de armas. Muitos destes grupos têm ligações directas a políticos e generais apoiantes do regime chavista, um fenómeno típico da América Latina em que o narcotráfico suporta e é protegido pelos Estados. Estes “narco-generais” são responsáveis por metade do tráfico da cocaína colombiana que se destina aos mercados da Europa. Mas se a cocaína é exportada para o Ocidente, as armas tendem a ficar na região. Recorde-se que Chávez comprou cerca de 100,000 Kalashnikovs à Rússia, muitas delas distribuídas pelos “colectivos”, milícias populares em defesa da Revolução. Na mesma ocasião, foi feito um acordo para a construção de uma fábrica de Kalashnikovs na Venezuela capaz de produzir 25,000 armas por ano – a fábrica deve entrar em produção em 2019. Sendo assim, a desintegração política da Venezuela e o estado endémico de corrupção, para além das evidentes consequências políticas, poderá gerar uma dinâmica regional de criminalidade comum, difícil de prevenir, mas ainda mais difícil de antecipar as consequências num quadro genérico de destabilização da região.

As manifestações de Sábado em Caracas são um momento crucial em que o sufrágio das ruas se fará ouvir. Se Bolívar ganhar, a Venezuela será arrastada para a lista dos Estados falhados. Se a Assembleia Nacional prevalecer, será talvez o trabalho político de uma geração reerguer a economia e estabilizar a democracia. Resta ainda perceber o papel dos militares, tantas vezes o elemento político decisivo quando a política fica estagnada no impasse e na indecisão. O ódio entre as facções poderá também ditar a lógica da violência, da retribuição e da guerra civil. Finalmente, do outro lado da fronteira, as divisões americanas aguardam os sinais que se erguem das ruas de Caracas.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico

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