Paris e Roma, Dakar e Da Vinci

Luigi Di Maio, Vice Primeiro-Ministro de Itália, acusou a França de ser a principal responsável pela pobreza em África, mantendo influência e controlo tipicamente coloniais. Mas do que fala Di Maio?

Os números são de uma frieza dantesca. A Itália está em recessão pela terceira vez numa década. De acordo com a avaliação de Bruxelas, o país terá um crescimento de 0.2% em 2019, arrasando as últimas previsões que apontavam para 1.2%. Para 2020 a situação não se apresenta melhor – uma revisão em baixa aponta para 0.8%, destruindo a expectativa colorida de um crescimento de 1.3%. Obviamente que o cumprimento do défice de 2.04% para o ano de 2019 não passa de um exercício de ficção. Perante estas previsões, o discurso político de Roma explode em todas as direcções – França.

Luigi Di Maio, Vice Primeiro-Ministro de Itália, logo veio acusar a França de ser a principal responsável pela pobreza em África, mantendo uma influência e controlo tipicamente coloniais, tudo a confluir para a actual crise das migrações. Mas do que fala Di Maio? Certamente na manutenção do Franco CFA, ou Franco da Comunidade Financeira Africana. A unidade monetária criada em 1945 chamava-se então Franco das Colónias Francesas de África, e é ainda hoje a moeda oficial de 14 países africanos, indexada ao Euro e controlada por Paris. E pode falar-se de efectivo controlo, uma vez que a moeda é emitida pelo Estado francês, as reservas estão no Banco Central de França, tendo cada país acesso a 15% das reservas e os restantes 85% são disponibilizados por empréstimo à taxa corrente do mercado. Uma vez que a paridade é estabelecida por Paris, tal em termos práticos significa que a soberania é limitada, que a definição de uma política monetária independente está também limitada, bem como a possibilidade de emissão de moeda. Para Di Maio, esta situação equivale a um “imposto colonial”, um modo expedito da França financiar a sua dívida pública, e que, sem este recurso colonial, a “França seria a 15ª economia do mundo”. Espantoso é que a questão é pacífica em França, mas mais espantoso ainda é que a situação é ignorada por Bruxelas, tanto mais que a França não é apenas membro da EuroZona, mas o centro político, económico e financeiro de uma AfroZona. Em Dakar, o Musée Théodore Monod continua a exibir artefactos coloniais de um passado que ainda é presente.

Mas Luigi Di Maio, membro do Movimento 5 Estrelas, não parou a sua ofensiva política. Desloca-se a França e tem um encontro com os líderes dos gilets jaunes, afirmando que os “ventos de mudança atravessaram os Alpes” e que uma “Nova Europa está a nascer dos coletes amarelos”. A França reage ao que classifica como “provocação” e chama o seu Embaixador em Roma para conversações. E é a maior crise diplomática entre a Itália e a França desde 1945, dois membros fundadores e de pleno direito da União Europeia. Nas palavras de Macron, a “lepra do populismo” ameaça a integridade do Projecto Europeu.

Na realidade, e de acordo com sondagens recentes, a transformação dos gilets jaunes de movimento inorgânico em partido político, representaria uma intenção de voto a rondar os 13% do eleitorado francês. Embora não seja detectada uma corrente dominante, as tendências políticas oscilam ao longo de todo o espectro político, desde a extrema-esquerda anarquista até ao limite da ultra-direita mais agressiva. O gesto político de Di Maio inscreve-se num duplo movimento político que se vai definindo pela Europa. Primeiro, o grande símbolo da Europa Federal e Liberal repousa no papel da França, logo o principal inimigo político a abater dentro dos limites da União para poder mudar a União. Segundo, a circulação livre das ideias políticas pode ser instrumentalizada para a formação de uma espécie de Internacional Populista, uma posição política que não se acomoda à diplomacia clássica das regras e das fronteiras estabelecidas. Contradição? Na lógica do Governo de Roma haverá maior ingerência do que a exigência de um Orçamento à medida dos interesses de Bruxelas; haverá maior ingerência do que a divulgação de previsões económicas ditadas por conveniências políticas e alinhamentos partidários? Ainda na lógica de Roma, a Itália reage apenas a uma ofensiva ideologicamente orientada para condicionar e manipular a soberania de uma “Itália como Nação Livre”. As previsões de Bruxelas são o equivalente político do “imposto colonial” que financia o défice e a dívida perpétua da França.

Leonardo Da Vinci nasceu em Itália e morreu em França. No ano de 2019 evocam-se 500 anos da morte do artista. O Louvre está a organizar uma grande exposição para celebrar a figura do humanista e a ideia de Europa. A Itália acusa a França de lançar uma campanha que visa promover a respectiva hegemonia cultural, ignorando a sensibilidade nacional e menorizando a grandeza artística de Itália. Por este facto, Roma recusa-se a ceder as obras emblemáticas de Da Vinci e solicitadas por Paris. Onde está a Europa que o “Homem de Vitrúvio” representa e nos convida a contemplar?

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico

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