O capítulo da polémica

O trabalho da OCDE fez-nos um grande favor. Fez o favor de contribuir para o debate sobre a modernidade da justiça, que em Portugal continua na idade das trevas.

Depois de semanas de especulação, finalmente foi publicado o relatório da OCDE sobre Portugal. A polémica esvaziou-se rapidamente porque o relatório, como é habitual nestes trabalhos, pouco tem de polémico. Trata-se de um trabalho eminentemente analítico, fazendo uso de literatura académica, que esmiuçou três grandes domínios: as finanças públicas, as exportações e o sistema judicial. As principais conclusões não ofendem ninguém. E, sem sombra de dúvida, o capítulo da polémica, sobre a justiça, é de longe o mais interessante de todos.

De uma vez por todas, a questão da justiça tem de ser abordada de forma frontal, por aqueles que estão dentro do sistema judicial, mas sobretudo por aqueles que estão de fora. As reiteradas tentativas de reformar a justiça a partir de dentro, incluindo a última iniciativa presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa, têm resultado sistematicamente numa mão cheia de nada. Do ponto de vista formal, vão sendo feitos uns arranjos, mas do ponto de vista substantivo pouco se avança. A justiça continua a ser um forte impedimento ao avanço do País e, evidentemente, a corrupção também, sobretudo num país pequeno como Portugal onde todos se conhecem e onde pequenas elites se infiltram junto do Estado para a obtenção de benefícios indevidos.

A economia de mercado assenta no conceito da transacção comercial. Uma parte compra, constituindo a procura, e a outra parte vende, constituindo a oferta. Mas a relação entre compradores e vendedores requer a salvaguarda dos direitos e deveres de ambos. Ou seja, requer o chamado “contract enforcement”, uma expressão inglesa para a qual não há uma boa tradução em língua portuguesa, mas que se refere à capacidade de fazer cumprir um contrato. Isto significa dar sequência à moldura contratual em tempo útil, com eficácia, e é aqui que entra a justiça, fazendo valer o significado dos contratos, zelando pela validade dos seus preceitos e, também, pelos direitos individuais sobre os quais têm de assentar.

De acordo com a OCDE, em Portugal, uma decisão de primeira instância nos tribunais cíveis e comerciais leva cerca de 10 meses (300 dias). Entre os países sondados pela OCDE, só quatro países estão piores do que nós (os dois do costume, Grécia e Itália, mais a Turquia e a França). Porém, se considerarmos os prazos médios das acções findas, o prazo médio das acções cíveis sobe para 15 meses. No terceiro trimestre de 2018, segundo a Direcção Geral de Política da Justiça (DGPJ), as acções declarativas constituíam 28,2% das acções cíveis, 15,5% correspondiam a reclamações de créditos, 8,9% a embargos e oposições, 6,7% a notificações judiciais avulsas, 4,0% a procedimentos cautelares e 3,6% a divórcios e separações.

A situação não é melhor nos processos comerciais. Na realidade, é nos tribunais de comércio que as coisas parecem estar cada vez piores. Segundo a DGPJ, a duração média dos processos de falência, insolvência e recuperação de empresas em Portugal é hoje de 55 (cinquenta e cinco) meses! Cinquenta e cinco meses são quatro anos e meio. É o tempo que demora em Portugal a finalização de um processo desta natureza, até ao chamado visto de correição, ou seja, incluindo todas as suas etapas processuais. Há mais de dez anos que não se observava tamanho atraso.

Ademais, a taxa de recuperação de créditos é de apenas 8,2% (do total de créditos reconhecidos).
As consequências do mau funcionamento da justiça são todas nefastas. Do ponto de vista dos princípios democráticos, representam a perversão daquela imagem de equilíbrio que as pessoas gostariam de associar à justiça. Com tamanhos atrasos, os que têm poder económico para aguentar e fazer passar o tempo, juntamente com os seus advogados, são os únicos beneficiados. E do ponto de vista económico, as consequências não são menos más, consistindo, entre outras, no incentivo à informalidade económica e no desincentivo ao investimento.

A desconfiança gerada num país onde a justiça não funciona mina o desenvolvimento do mesmo. Este é um país onde os empresários, à primeira oportunidade, deixarão de respeitar os seus colaboradores, fornecedores e clientes. É um país onde não valerá a pena investir em inovação, onde as empresas não colaborarão umas com as outras, onde os fundadores de “start-ups” pensarão duas vezes antes de se lançarem aos desafios. É um país onde o crédito será mais difícil. Um país onde os recursos não fluirão dos sectores não produtivos para os sectores produtivos, como se esperaria numa economia de mercado.

Parte da solução para a justiça será administrativa, porque a justiça é administração pública. Acabar com as férias judiciais e fazer como sucede em qualquer empresa seria um bom começo. Outra parte será tecnológica, adoptando as ferramentas digitais que hoje existem, conferindo à justiça eficiência e transparência processuais, tanto para dentro como para fora. E, por fim, não menos importante, a solução também será cultural.

Aqui, o trabalho da OCDE fez-nos um grande favor. Fez o favor de contribuir para o debate sobre a modernidade da justiça, que em Portugal continua na idade das trevas. Cabe-nos a nós decidir se queremos fazer de conta ou se queremos enfrentar o problema. Eu sou pela frontalidade.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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