Uma discussão urgente que não dá votos

O problema da Administração Pública é muito mais complexo do que a discussão sobre carreiras e salários. Talvez por isso, não renderá qualquer voto. Também por isso, é preciso escrever sobre ele.

Basta folhear as notícias de uma semana para percebermos como muitos departamentos do Estado estão a funcionar.

  • A Segurança Social está a demorar, em média, 10 meses a atribuir pensões de reforma. Deixando muitos portugueses sem rendimento, incluindo desempregados de longo prazo. Porque falta gente no departamento.
  • A mesma Segurança Social esteve mais de 10 anos a pagar pensões de sobrevivência a cidadãos que já tinham morrido – e só conseguiu recuperar 17% dos quase quatro milhões de euros perdidos. Porque não há gente suficiente (nem uma comunicação eficiente entre ministérios).
  • O Ministério da Saúde continua sem dar médico de família a mais de 600 mil pessoas, porque não há médicos de família suficientes. O governo da Galiza, mesmo aqui em cima, está a contratar médicos portugueses pelo dobro do salário.
  • A ADSE pode estar a perder milhões porque o seu sistema de auditoria “praticamente não existe”. Palavra de João Proença, um insuspeito socialista, que diz ser “incompreensível” a falha do compromisso do Governo em aumentar meios para estas inspeções.
  • Os centros de fertilização in vitro não estão a ser fiscalizados, porque o instituto público que devia fazê-lo está em “situação de pré-rutura” – porque falta gente, claro. Para não dizer que está absolutamente dependente da AR até para comprar toners para a impressora.
  • O IAPMEI está a demorar, também, nove meses (em média) a tomar decisões sobre o pagamento ou reembolso de fundos europeus. Porque falta gente.
  • As Forças Armadas gastaram 372 mil euros na contratação de uma empresa privada, para fazer rondas e segurança a três edifícios. Porque falta gente (como se tornou evidente em Tancos).
  • A Comissão de Proteção de Dados passou quatro multas por violação de dados pessoais em mais de sete meses, porque tem 20 pessoas a fiscalizar todo o mundo português online.

Como lhe digo, são apenas notícias da última semana. Mas mostram à evidência a fragilidade com que o aperto de cinco de duas décadas deixou a Administração Pública.

O problema tem muitas dimensões, mas temo que as próximas campanhas eleitorais só nos levem a discutir duas delas: a da falta de meios; ou da falta de aumentos salariais (e progressões nas carreiras).

Na verdade, o problema é muito complexo do que isso. Talvez por isso, não renderá qualquer voto. Também por isso, é preciso escrever sobre ele.

1.
Não era preciso o aviso da Provedoria de Justiça para Vieira da Silva saber que os novos pensionistas demoram quase um ano até terem acesso às suas reformas. Há um mês, na Assembleia, o ministro reconheceu que o problema é grave, mas explicou aos deputados os dois problemas com que se deparou: que faltam técnicos na Segurança Social – e os novos que chegam sabem menos e demoram tempo a aprender; e que um concurso externo para a contratação de técnicos demora, imagine, um ano e meio até estar finalizado.

Não gosto de usar pontos de exclamação, mas neste caso é mesmo preciso: para contratar uma centena de pessoas, talvez menos, um ministério precisa de ano e meio! Numa empresa privada tudo se faz em menos de um mês. Como é que, com estas regras, o Estado pode responder a tempo aos muitos problemas com que se depara? Como é que pode competir com o setor privado quando contrata? Sem flexibilidade, com tantos obstáculos procedimentais, como é que o Estado pode fazer outra coisa senão ocorrer aos incêndios do dia-a-dia?

2.
Segundo problema
: o da qualificação – e dos salários. Esta semana soubemos (pelo JN) que o governo regional da Galiza está a vir a Portugal contratá-los pelo dobro do preço.

É um problema generalizado do SNS (até na concorrência com o setor privado, para o qual não para de perder médicos e especialistas). Mas é também um problema na Segurança Social e em tantos outros departamentos do Estado, sobretudo nas áreas mais qualificadas.

Se no Estado cada trabalhador corresponde a uma carreira, se tem carreiras congeladas por tempo indeterminado, se tem limites salariais muito mais baixos do que no setor privado, se a requalificação dos funcionários é muito insuficiente e não há incentivos (nem prémios, nem avaliações consequentes) como é que o Estado pode chamar ou reter os melhores? E, sem eles, como é que responde bem aos problemas de nós todos?

Há nove meses, António Costa chegou a dar-nos uma perspetiva realista sobre este problema: disse-nos que, tendo pouco dinheiro para aumentar salários dos funcionários públicos, preferia contratar alguns qualificados. Depois fez o contrário – e subiu o ordenado mínimo no Estado para 630 euros. Afinal, quem é que o Estado quer chamar ou segurar?

3.
Em terceiro lugar
, há também um problema de informatização do Estado. Não é possível que, em pleno século XXI, o Ministério da Segurança Social se queixe por perder milhões em pensões atribuídas a pessoas mortas porque o Ministério da Justiça não o avisou dos óbitos. Ou que nos diga que as pensões demoram a atribuir porque os descontos são tratados à mão.

Em pleno século XXI, não faz sentido que existam milhões de multas de trânsito por cobrar porque não há como tratar tanta informação – só para dar mais um exemplo recente.

O Estado precisa de um plano de investimento urgente na sua informatização plena. Isso custa dinheiro, muito. Mas vai poupar dinheiro e dar-lhe enorme eficácia.

4.
Quarto ponto
, o do reforço das áreas inspetiva e de fiscalização. São sempre o parente pobre do Estado – têm muito pouca capacidade reivindicativa, são mal vistos dentro do próprio Estado (como qualquer polícia), só conseguem a atenção mediática quando se percebe que algo falha.

Acontece que, agora, falha muitas vezes. E quase sempre por falta de meios humanos, técnicos, informáticos. Como nos casos que acima descrevi, na Segurança Social, na ADSE, no IAPMEI, na Comissão de Proteção de Dados.

Já vimos casos em que as faltas provocaram danos bem maiores: caso de Tancos, caso dos incêndios em lares que não têm fiscalização, caso da Raríssimas, com o qual percebemos que a Segurança Social transfere milhões para instituições sem sequer fiscalizar as suas contas, resultados e procedimentos.

Como temos visto, não há Estado forte sem uma boa capacidade inspetiva. Só ela impõe o respeito – para fora e para dentro. Só ela limita os abusos. Só ela garante que tudo funciona. Hoje, tudo isso falta – em muitas dimensões.

Infelizmente não será tema da campanha. Não há interesse dos políticos em discutir as falhas dos departamentos que dirigem.

5.
Por fim, a falta de meios – e o método de Centeno.

A falta de meios que este Governo acentuou, ao reduzir o horário de trabalho dos funcionários públicos para 35 horas. Como ao dar total prioridade à reposição de rendimentos, face à requalificação dos serviços.

A falta de meios também acentuada pela gestão criteriosa de Mário Centeno, usando das cativações para controlar as despesas de muitos ministérios, obrigando-os a pedir autorização às Finanças para gastos correntes e para todas as contratações.

O método foi crucial para controlar as contas. Mas tirou o pouco oxigénio que a Administração tinha para respirar – ou para funcionar.

Esta semana, finalmente, ouvi uma ministra (a da Saúde) dizer no Parlamento que o Governo não pode esgotar toda a margem de investimento que tem na melhoria das remunerações dos funcionários. Oxalá isso queira dizer que, daqui para a frente, o Governo mudará de política – e de prioridades.

Uma coisa é certa: o dinheiro continuará a ser pouco. E a necessidade de investimentos na Administração imensa.

E é aqui que volto ao inicio deste texto: para este dilema a campanha eleitoral não ajudará muito – porque os serviços do Estado não têm direito de voto. E os futuros parceiros de Governo? Ajudarão?

Notas soltas da semana

  • O feitiço contra o feiticeiro. Centeno conseguiu controlar as contas deste Governo de esquerda com um truque simples: a maioria das medidas anunciadas foram diferidas no tempo, o que permitiu ir gastando menos e controlando a execução da despesa. Agora, os sindicatos agarraram no truque e viraram-no contra o Governo: por que não devolver as carreiras congeladas também em vários anos? Problema um: fazer isto antes de entrar um novo Governo é comprometer o futuro. Problema dois: com a economia a desacelerar, será possível repetir a fórmula?
  • As novas PPP. Sem dinheiro para hoje, o novo lema do Governo é prometer para amanhã. Em poucos dias, prometeram-se 1000 novas vagas em creches (até 2021), também 1068 lugares para auxiliares educativos (para 2020); assim como se anunciaram 1200 agentes para PSP e GNR (daqui a ano e meio estarão em funções), para não falar nas 11 500 vagas em residências universitárias, que só estarão completas quando os alunos de hoje estiverem licenciados. Bem dizia o Variações, lá nos idos anos 80: “É pr’a amanhã“. Paga quem vem depois.
  • A velha agenda de Rui Rio. O PSD acalmou, mas tem gato escondido. Num discurso este fim de semana, Rui Rio avisou que quer combater os poderes “fátuos” da comunicação social e da justiça que, diz ele, estão cada mais mais cruzados e que fazem o país parar. Ainda vamos ver que “grande reforma” quer ele para uns e para outros. Será só depois das eleições?

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