Uma reforma fiscal para diminuir a desigualdade
Famílias de mais baixos rendimentos suportam carga fiscal excessiva, apesar de não pagarem IRS. É cerca de metade da população nacional, por isso o sistema fiscal não é progressivo nem redistributivo.
Portugal tem um sério problema de desigualdade na distribuição do rendimento. Somos o terceiro do país da Zona Euro com o índice de desigualdade mais elevado (índice de Gini) e o primeiro na comparação entre o valor dos rendimentos dos 10% da população que mais ganha com os 50% da população com menores rendimentos (dados da OCDE).
A desigualdade é apontada como um entrave ao crescimento económico. Segundo Michael Spence, Nobel da economia de 2001, os modelos de crescimento que aumentam a desigualdade, em geral fracassam. E explica que isso se deve ao facto de ela aumentar a polarização e a conflitualidade social, frustrando, com isso, as reformas e o investimento, que são indispensáveis ao crescimento a longo prazo
Tomas Piketty demonstra que quando o índice de desigualdade atinge um limiar elevado, as sociedades entram em convulsão e em guerra. A desigualdade foi reconhecida como um dos sete males sociais identificados por Beveridge, um dos fundadores do Estado Social, em 1942.
No passado, a mão-de-obra intensiva era um importante fator de distribuição dos rendimentos pelas empresas, mas agora esse modelo está em crise. A revolução tecnológica está a substituir os trabalhadores de tarefas cada vez mais complexas por algoritmos e pela inteligência artificial, o que aumenta o número dos excluídos e, por isso, revoltados.
O problema da desigualdade é mais grave nos EUA do que na Europa, mas os países europeus que nos acompanham com o índice mais elevado enfrentam problemas sociais e políticos muito sérios, como é o caso da Grécia, de Espanha, de Itália e da França.
Este problema é a mais importante causa do mal-estar social que está na base dos estranhos resultados eleitorais que estão a acontecer nestes e noutros países.
No nosso país, um estudo da Fundação Manuel António dos Santos (FMAS) e do ISEG mostra que a parte da população mais sacrificada pela crise foram os 10% que auferem rendimentos mais baixos, que tiveram uma quebra de 25%. O mesmo relatório revela que as famílias mais afetadas pela crise foram as de idade mais jovem, até aos 24 anos, que sofreram uma quebra de 29% no seu rendimento, tendo passado de 22% para 34% a respetiva taxa de pobreza. O índice de pobreza concentra-se, fundamentalmente, nas pessoas menos instruídas, sendo de 63% nas pessoas que possuem o 2.º ciclo ou inferior.
No seu relatório “Toward a New Social Contract”, o Banco Mundial refere que a perceção da desigualdade em Portugal é a segunda mais elevada da UE, só sendo ultrapassada pela Hungria.
Estes dados mostram que temos um problema muito sério de desigualdade em Portugal. Ele é uma das causas do nosso fraco crescimento económico e poderá produzir consequências sociais mais graves, pelo que necessitamos de trabalhar cuidadosamente sobre ele.
Necessitamos de uma estratégia que diminua rapidamente a desigualdade no nosso país. Nos EUA, o tema da desigualdade e das medidas fiscais para o incremento da equidade, estão no centro de debate político. Só nos últimos meses, foram apresentadas quatro importantes propostas, centradas no aumento de impostos para os mais ricos (dos candidatados Warren, Sanders e da estrela Ocasio-Cortez). Só Kamalla Harris propõe medidas do lado dos mais pobres, com a criação de um crédito fiscal reembolsável.
O sistema fiscal é um poderoso instrumento que temos que usar para esse fim, dada a função redistributiva dos impostos. Esse efeito está largamente documentado e é aceite de forma generalizada. O estudo da FMAS, que antes referimos, revela que os impostos diretos são o mais poderoso instrumento de diminuição das desigualdades, muito superior aos das pensões, dos subsídios e das transferências sociais (65% contra cerca de 16% e 19%, respetivamente). O incremento da eficácia da nossa máquina fiscal, no início deste século, deu origem ao período em que o índice de desigualdade mais baixou.
Normalmente, as propostas de diminuição da desigualdade defendem um aumento de impostos para os mais ricos e para a classe média. Mas a forma mais eficaz de alcançar esse objetivo é diminuir a tributação sobre aqueles que auferem rendimentos mais baixos. A OCDE lembra que reduzir a desigualdade não é apenas diminuir a concentração de riqueza nos níveis mais elevados de rendimento. É também desenhar um sistema fiscal que não impeça e, se possível, promova, a poupança e a formação de riqueza nos estratos mais baixos.
Embora as famílias de mais baixos rendimentos não paguem IRS em Portugal, suportam um IVA demasiado elevado. Os estudos revelam que o IVA médio suportado por uma família de rendimentos mais baixos é de cerca de 18% do seu rendimento global, o que é manifestamente excessivo. Revelam, também, que essa taxa média diminui constantemente para as famílias com mais elevados rendimentos, o que significa que o IVA é um imposto regressivo.
Essa regressividade contraria os fins redistributivos que a Constituição estabelece ao sistema fiscal.
As famílias de mais baixos rendimentos suportam uma carga fiscal excessiva, apesar de não pagarem IRS. E como se trata de cerca de metade da população portuguesa, resulta daí que o sistema fiscal português não é progressivo nem redistributivo, para a metade da população com menores rendimentos ou sem eles.
Esta injustiça deve ser corrigida com a criação de um crédito fiscal reembolsável, correspondente a uma parte do IVA suportado pelas famílias mais pobres.
As famílias poderiam receber um crédito correspondente a uma percentagem do valor do IVA suportado pelos seus membros, que seria tanto mais elevada quanto mais baixos fossem os seus rendimentos. No limite, para as famílias sem quaisquer rendimentos, a devolução poderia corresponder a uma percentagem próxima da totalidade do IVA suportado, reduzindo-se, dessa forma, a carga fiscal para um nível próximo da sua capacidade contributiva efetiva, que neste caso seria nula.
Esse crédito fiscal deveria operar em sede do IRS, podendo ser abatido a este imposto ou recebido como um reembolso. Como se trata de um crédito, ele poderia ser reembolsado, mesmo àquelas famílias que atualmente não pagam IRS. O reembolso poderia ser recebido no final do ano, ou até mensalmente.
Existem condições para que esse sistema funcione com precisão e eficiência no nosso país. Ao mesmo tempo, ele possui a virtualidade de se autofinanciar, com os ganhos que proporcionaria no combate à evasão e fraude fiscais.
Este regime produziria uma melhoria no nível de vida das classes mais desfavorecidas e aumentaria a equidade social e o efeito redistributivo que a Constituição estabelece para o sistema fiscal.
O sistema fiscal não é apenas um instrumento de obtenção de receitas para o Orçamento do Estado. É um instrumento essencial de equidade, de justiça social e, também por essa via, de desenvolvimento económico, de prosperidade, afinal.
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