Viagens no Tempo

Ainda há sítios no mundo onde usar carroça e casar com nove anos é normal, e outros, onde a casa é num arranha-céus e se vai a banhos numa praia artificial.

Podia ser ficção científica mas é pura realidade. Para viajar no tempo não é preciso ser amigo de um cientista louco, basta sair da nossa aldeia. Ainda há sítios no mundo onde usar carroça e casar com nove anos é normal, e outros, onde a casa é num arranha-céus e se vai a banhos numa praia artificial. E escusam de ligar o Delorean, às vezes, é possível ver isto tudo sem ter que se mudar de fuso horário.

O desenvolvimento das sociedades é tão díspar que podemos almoçar proteína em pó, no futuro e ir jantar porco no espeto, ao passado. E ninguém dobra a curvatura do espaço-tempo tão bem como os árabes e os asiáticos. Há favelas sem água, à sombra de jardins suspensos. Há mansões coloniais ao lado de condomínios descumunais. Há pessoas a vender fruta no chão, ao lado de gigantescos centros comerciais. Se olharmos com atenção, o passado e o futuro estão sempre presentes.

Já nós, decidimos voltar à Malásia depois dois meses em Bali. O comboio que liga o aeroporto ao centro de Kuala Lumpur faz em 28 minutos o que o táxi faz numa hora e meia. Não só viajamos no espaço, como atravessamos estações, passamos de um Verão abafado para um Inverno de ar condicionado. Por razões práticas e não estéticas, decidimos ficar no bairro indiano, Brickfields. Os prédios são tão altos que lá em cima ainda é de dia e cá em baixo já está de noite. Há um centro comercial moderníssimo em frente a esta barraca que vende naans feitas à estalada. O fumo fica todo cá em baixo. E o cheiro. E o barulho. Ficar neste hotel não foi a coisa mais inteligente que fiz na vida. A luz até pode viajar mais rápido que o som (como nos ensina qualquer trovão), mas a luz dá para desligar, e o choro deste bebé aqui ao lado, não.

Aproveito a Insónia imposta para vos contar outra descoberta curiosa. Isto porque além da parede que partilhamos com o quarto do bebé, estamos paredes meias com a sala de orações. E hoje é Sexta-Feira, que é como quem diz, dia de muita oração. E foi aí que reparamos numa setinha no tecto. Bom, foi aí que nos demos ao trabalho de a decifrar, visto que esta setinha está em todos os tectos que nos viram dormir, aqui na Malásia. Eu sempre achei que apontava a saída de emergência mas, às vezes, a emergência queria que saltassemos pela janela. E foi então que percebemos o que quer dizer Kiblat, palavra em Bahasa para Quibla: direção. De Meca. A única viagem no espaço, obrigatória em tempo de vida, para qualquer muçulmano. A bússola religiosa para qualquer reza. “Bem me parecia que aquele tapetinho era bonito demais para sair do banho”…

Bom, como a nossa seta apontava para a porta, lemos a coisa como um sinal. E decidimos fugir daquelas coordenadas para paragens mais arejadas. Calibrámos o nosso comboio do tempo para voltar a um passado mais bonito e silencioso. A escolha caiu no verdejante estado de Perak, mais propriamente na medianamente carismática Ipoh.

E é agora que vos revelo que não é só possível escolher o tempo e a estação onde se vive como também o dia da semana. Ora Ipoh é daqueles sítios onde é sempre Domingo. Por oposição a Kuala Lumpur, onde é sempre Segunda ou Sexta-Feira. Claro que o ideal para quem está de férias é encontrar uma cidade-Sábado. O problema é que às vezes as cidades enganam. Não se tira a pinta ao calendário, logo no primeiro encontro. Tínhamos que esperar para ver.

E então chegámos à conclusão que Ipoh é o passado de George Town do presente. Sendo que George Town é o passado da Penang do futuro.
É normal estarem confusos, viajar no tempo dá nisto. E é por isso que vão precisar de uma semana para perceber tudo. É o tempo que demora a mandar a próxima crónica até aí. Ao passado. É lá que ainda vivemos, não é?

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