Segurança Social: um debate, vários mitos

Se o sistema hoje nos dá garantia de maior longevidade é porque já não é o sistema que tínhamos no final dos ano 90. Foram feitas mudanças precisamente no sentido do que é rejeitado por muita gente.

Em duas semanas a discussão sobre a Segurança Social foi arrumada a um canto, entre acantonamentos ideológicos, desqualificação rasteira dos académicos do Instituto de Ciências Sociais autores do estudo para a Fundação Francisco Manuel dos Santos e entretenimentos vários, como as trocas públicas de mimos entre Sérgio Moro e José Sócrates ou entre o Bloco de Esquerda e o Governo a propósito da Lei de Bases da Saúde.

Mas este é um debate a que voltaremos obrigatória e regularmente nos próximos anos, seja para discutir mudanças profundas ou medidas avulsas que vão atenuando o efeito da evolução da demografia.

No debate das últimas semanas vieram à tona, como é habitual, posições marcadas pelos posicionamentos ideológicos. Estes incidem, sobretudo, na rejeição de algumas das soluções possíveis que vão sendo apresentadas. Mas como a aritmética teima em não validar essa recusa, tenta matar-se o problema na sua raiz, garantindo que o sistema está bem, está sólido e não precisa de mudanças.

Era bom que assim fosse. Mas não é. E uma discussão baseada em mitos não nos levará muito longe. Eis os principais.

Mito 1 – O ano previsto para a ruptura do sistema vai sendo adiado e isso prova que esse risco não existe.

Sim, o ano da ruptura das projecções que vão sendo feitas também vai evoluindo com o tempo. Por exemplo, o Livro Branco da Segurança Social, liderado por Correia de Campos na segunda metade dos anos 90, apontava a década de 2020 para o início do período em que as receitas correntes da Segurança Social iam ser inferiores às despesas com pagamento de pensões. E isso, sabemos hoje, não vai acontecer. Isso quer dizer que, afinal, o sistema é sustentável? Não. Se o prazo para o início dos défices crónicos é hoje mais distante é porque entretanto se fizeram mudanças. Algumas delas já eram rejeitadas na altura. António Guterres alterou a fórmula de cálculo para as novas pensões – e garantiu que isso eram suficiente para manter o sistema por mais 100 anos… – e, mais tarde, José Sócrates e Vieira da Silva introduziram o factor de sustentabilidade, adiando gradualmente a data legal da reforma. Também foram penalizadas as reformas antecipadas. Ou seja, se o sistema hoje nos dá garantia de maior longevidade é porque já não é o sistema que tínhamos no final dos ano 90. Foram feitas mudanças precisamente no sentido do que é rejeitado por muita gente: reforma cada vez mais tarde e pensões cada vez mais baixas em relação ao que eram garantido pelos regimes anteriores.

Os que se opõe a essas alterações – há quem queira acabar com o factor de sustentabilidade – são os mesmos que se apropriam dos seus efeitos para defender que a ruptura é um cenário alarmista.

Mito 2 – O sistema é sustentável e só precisamos de encontrar novas formas de financiamento.

Esta afirmação é, ela própria, uma contradição. Se é necessário ir à procura de receitas adicionais às que estão em vigor, que são sobretudo baseadas nas contribuições de trabalhadores e empregadores, então é porque a base do sistema, como está desenhado, não é mesmo sustentável. O recurso a receitas adicionais começou há muitos anos com o IVA Social e foi reforçado recentemente com os adicionais ao IMI e ao IRC, quer garantiram mais cerca de mil milhões desde 2015 para o Fundo de Equilíbrio Financeiro da Segurança Social. Portanto, não querendo optar-se por alguma das outras possibilidades, a sobrevivência do sistema será feito com mais impostos. É um caminho possível, que deve ser apresentado de forma transparente aos contribuintes e beneficiários: estamos a aumentar impostos para garantir o pagamento das pensões. Não se diga é que isso é sinónimo de sustentabilidade. Porque com mais impostos tudo se pode tornar sustentável. Até o Estádio de Aveiro.

Mito 3 – Mudanças na Segurança Social significam jogar com o dinheiro das pensões na bolsa.

Quando ouvi este argumento imaginei que, sem ninguém dar conta, o Fundo de Equilíbrio Financeiro da Segurança Social tinha passado a guardar o dinheiro debaixo do colchão. Um colchão enorme, para cobrir os cerca de 18 mil milhões de euros que estão à sua guarda. Mas uma consulta breve do último relatório de gestão do Fundo, referente a 2017, mostra que não: o fundo continua a aplicar esses montantes no mercado de capitais, segundo princípios de prudência, baixo risco e boa gestão. O grosso das aplicações é feito em títulos de dívida pública – que, para quem não sabe, também são cotados e negociados em bolsa todos os dias e podem estar sujeitos a grandes variações de cotação, como aconteceu com os títulos portugueses quando os juros dispararam no início da década – mas também em acções, como é razoável em qualquer portfólio diversificado de investimento. Está tudo regulado por lei. Por exemplo, o FEFSS tem de ter um mínimo de 50% investido em títulos de dívida pública portuguesa ou outros garantidos pelo Estado Português e pode ter um máximo de 25% investido em acções.

No final de 2017 o Fundo tinha pouco mais de 13% da sua carteira (cerca de dois mil milhões de euros) investidos em acções de vários países, sobretudo americanas. Há algum problema com isto? Nenhum. O histórico da gestão do FEFSS mostra extrema competência e cautela, garantindo níveis de rentabilidade que comparam muito bem com os privados para o mesmo nível de risco. Portanto, o problema não está nos activos em que se aplicam as poupanças mas na forma como a carteira é gerida. Para serem coerentes, os que acenam com o papão da bolsa, a “economia de casino” e coisas do género deviam propor já que os dinheiros da Segurança Social saíssem da bolsa e fossem aplicados de outra forma. Em quê? Adorava saber.

Mito 4 – Um sistema de capitalização implica obrigatoriamente a privatização da Segurança Social.

Não é verdade. Ou andam distraídos ou então preferem esquecer que já há um chamado PPR público, gerido pelo Estado. E muito bem. É o Regime de Capitalização Público, lançado em 2008, e a ele pode aceder quem quiser, de forma voluntária, com a subscrição de Certificados de Reforma. Mais de 7.000 pessoas já o fizeram. Já este ano, foi regulamentada a possibilidade deste sistema público poder também contar com as contribuições de empregadores.

Isto mostra que um pilar de capitalização paralelo ao da repartição em vigor não significa, necessariamente, que o sector privado venha a ter responsabilidades obrigatórias na gestão das reformas. É saudável que quem queira possa construir uma poupança como complemento de reforma e que esta possa ser gerida pelo Estado com as mesmas regras, princípios e princípios de cautela dos restantes fundos da Segurança Social. Não se entende, aliás, que este sistema complementar de capitalização não seja devidamente publicitado para que mais pessoas possam ser incentivadas a aderir.

Dá-se de barato que a entrega de poupanças para a reforma a entidades privadas possa gerar receios e ser utilizada como argumento para não se reforçar sistemas individuais de capitalização. Afinal, é inequívoco que alguns banqueiros e financeiros conseguiram numa década, com os seus comportamentos deploráveis, aquilo que o comunismo não conseguiu durante um século: dar má fama e lançar dúvidas sobre o capitalismo. Mas há a alternativa de permitir que, quem queira, possa manter a suas reformas futuras geridas pelo Estado. Não se mate é o mecanismo e os seus benefícios apenas com base nas críticas à gestão privada. Se a capitalização é útil, e é, ela pode ser assegurada por um sistema público.

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