A ilusão do “sucesso” do défice zero
Dê-se as voltas que se der, a conclusão é sempre a mesma: os últimos quatro anos agravaram as contas públicas do ponto de vista estrutural.
Na semana passada foram divulgados os relatórios da UTAO e do Conselho de Finanças Públicas sobre o Programa de Estabilidade (PE) apresentado pelo governo a 15 de abril. Adicionalmente, a Comissão Europeia publicou as suas previsões económicas da Primavera.
Em matéria de crescimento, as três entidades são convergentes nas suas conclusões. Aquilo que expõem vem em linha com o que foi sendo dito nos últimos meses, mas que o Governo continua a ignorar. Que a economia mundial e europeia esta em desaceleração e que a evolução dos preços está abaixo do objetivo de inflação do BCE.
Desta forma, as três entidades prevêem um crescimento para Portugal nos próximos anos abaixo de 1.5%. Recorde-se que o Governo prevê um valor em torno dos 2%. De onde vem a previsão mais otimista do Governo? Do facto de que as projeções apresentadas no PE implicam que o crescimento real próximo do crescimento do produto potencial. Ou seja, o Governo antevê que a economia continuará a beneficiar dos efeitos favoráveis que teve nos últimos 4 anos.
Além disso, e mais preocupante, o crescimento para os próximos quatro anos assenta no consumo interno (privado e público). A procura externa terá um contributo negativo para o crescimento (ou seja, as importações vão crescer mais que as exportações). De fato, quando olhamos para este PE é a desilusão em matéria de aposta futura nas exportações. Depois de terem passado de 28% para quase 45% do PIB, o Governo prevê que em 2023 o volume das exportações continue a representar um valor em torno dos 45% PIB. Bem abaixo dos nossos principais concorrentes, onde as exportações representam mais de 70%-80% PIB.
O Governo prevê também uma redução da taxa de desemprego dos atuais 7% em 2018 para 5.4% em 2023. Este número tem dois problemas:
- Se assim for, Portugal terá uma taxa natural de desemprego em torno dos 5%, o que era o valor antes da crise. Isso significaria que o impacto estrutural da crise estaria ultrapassado, o que se afigura improvável.
- Descidas adicionais do desemprego neste momento são mais difíceis do que nos últimos anos. É mais fácil descer o desemprego de 12% para 10.5% (a mesma magnitude da descida prevista no PE) que de 7% para 5.4%. O custo marginal de cada décima a menos de desemprego tendo a ser maior. E com a economia a crescer 1.5% isso dificilmente acontecerá.
Mas a grande conclusão destas entidades é algo que ando a dizer há três anos. A redução do défice está assente em efeitos pontuais e na conjuntura favorável. A consolidação foi cíclica e não estrutural.
A Comissão Europeia prevê para 2019 um défice estrutural (isto é, o défice sem o efeito do ciclo económico e sem as medidas “one-off”) de 0.5%. Isto significa que entre 2015 e 2019, o défice estrutural passou de 2.2% para 0.5%, uma redução de 1.7 p.p.. Só que como tenho aqui referido, a política monetária do BCE trouxe um efeito de redução do défice de 1.8 p.p. (1.3 de redução da despesa com juros por via da redução das taxas de juro e 0.5 de dividendos e IRC do Banco de Portugal). Junte-se a isto menos 0.2 de investimento (Portugal é em 2018 o país da UE com menos investimento público).
Some-se estas três parcelas, e vemos que juntas valem 2 p.p., para uma redução do défice estrutural de 1.7.
Facilmente chegamos à conclusão que o défice estrutural se agravou nesta legislatura. Tal como tenho dito aqui nestes últimos três anos.
Mas podemos também ver isso na evolução do saldo primário estrutural (que é o défice estrutural sem os juros e o investimento). O saldo primário estrutural em 2015 era um excedente de 2.5%. Em 2019 terá um excedente de 2.8%. Ou seja, melhorou 0.3. As receitas provenientes do Banco de Portugal valem 0.5.
Nesse aspeto vale também a pena ver o gráfico da página 43 do relatório da UTAO. Ai mostra-se como foi feita a passagem do défice nominal de 3% em 2015 para 0% em 2018. O que vemos é que os juros reduziram o défice nos tais 1.3 referidos atrás e o investimento reduziu o défice em 0.2 também já referidos. Depois, o resto foi efeito da receita fiscal e contributiva que reduziu o défice em 0.7.
Outro gráfico interessante está na página 46 do relatório da UTAO. Ai vê-se as determinantes da redução do saldo orçamental nominal entre 2014 (o ano de saída da troika) e 2018. Vê-se novamente o efeito dos juros em 1.3 e o efeito do ciclo económico em 2.4.
O ajustamento estrutural, que é a redução do saldo estrutural primário, foi, como já mencionei atrás, de apenas 0.3. E neste 0.3 estão os tais 0.5 da receita do Banco de Portugal.
E para os próximos 4 anos a receita deste Governo é igual. Entre 2019 e 2023 prevê reduzir o défice em 0.8, sendo 0.6 efeito da redução dos juros e apenas 0.2 de efeito de ajustamento estrutural.
Ou seja, nos próximos quatro anos o ajustamento estrutural vai continuar a ser adiado. Continuaremos a ter um défice estrutural, quando corrigido do efeito do BCE, acima de 1.5%. Caminho certo para na próxima recessão colocar Portugal, de novo, com um défice acima dos 3%, e com graves problemas de refinanciamento da sua dívida pública.
E não vale a pena falar de redução de impostos. Este Governo reduziu o IRS em 1.2 mil M€, mas para isso agravou os impostos indiretos e sobre o património em cerca de mil M€. Depois houve a “borla fiscal” de 500 M€/ano do IVA da restauração (um subsídio ao setor). A UTAO é clara quando diz que nos últimos quatro anos verificou-se em Portugal um aumento da carga fiscal, que atingiu em 2018 o valor mais elevado de sempre.
Mas quando olhamos para estes relatórios volta a saltar à vista algo que já tinha referido aquando da análise inicial ao PE, que fiz no dia 16 de abril. O enorme aumento de despesa nominal dos últimos 4 anos e o enorme aumento previsto para os próximos quatro.
Nos últimos quatro anos a despesa nominal passou de 86.8 mil M€ em 2015 para 90.2 mil M€ em 2019. Um aumento de 3.5 mil M€. Nos 4 anos anteriores, entre 2011 e 2015, tinha subido 400 M€. Só a despesa com pessoal passou de 20.3 mil M€ em 2015 para 22.5 mil M€ em 2019. Mais 2.2 mil M€ em 4 anos. A que se somam mais 3.5 mil M€ em prestações sociais.
Refira-se que as despesas com pessoal entre 2010 e 2015 reduziram-se em 1.6 p.p. do PIB (de 12.8 para 11.2). Isto com os cortes do tempo do governo PS (Sócrates), mas com a economia em recessão. Entre 2015 e 2019, a redução do peso das despesas com pessoal no PIB baixou em 0.4 (de 11.2 para 10.8). A economia a crescer foi disfarçando o efeito do peso da despesa pública. Mas é um efeito que não durará sempre.
Para os próximos quatro anos o Governo prevê gastar mais 11.3 mil M€! Sim, leu bem, mais de 11 mil M€ em 4 anos. Só em despesas com pessoal são mais 2.5 mil M€. Este valor (bem como o valor mostrado pela UTAO, que o efeito líquido da medida dos professores, era inferior a 400 M), mostra bem como disse aqui na semana passada, a farsa que foi a crise política criada pelo primeiro-ministro, com o respaldo propagandístico do Doutor Centeno. Já as prestações sociais vão subir 5 mil M€.
Por último, refira-se as fortes críticas que a UTAO faz aos atrasos na implementação da reforma das Finanças Públicas. Os Adiamentos sucessivos no processo de implementação da nova LEO e do SNC-AP. As fortes críticas do Tribunal de Contas à condução desse processo. O facto de que a entidade que é suposto fazer esta reforma (a UNILEO), no espaço de menos de 2 anos já ir no terceiro diretor. Falarei sobre isso em breve.
Em síntese, a “manta orçamental” começa a ficar curta para tapar as ilusões que o Doutor Centeno propagandeou durante quatro anos. O efeito cíclico e da política do BCE está a mostrar a fragilidade da consolidação orçamental que foi seguida. Sem política monetária do BCE e sem os cortes nos investimentos e nos serviços público, o défice estrutural ter-se-ia agravado nos últimos 4 anos.
Dê-se as voltas que se der, a conclusão é sempre a mesma: Os últimos quatro anos agravaram as contas públicas do ponto de vista estrutural. Pode parecer estranho, dado o aparente “sucesso” do défice zero do Doutor Centeno. Mas é tudo ilusório. A melhor conjuntura económica desde os anos 90 foi mais uma vez desperdiçada (e pelos mesmos).
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