Berardo pode aldrabar? Sim, mas com bons modos no Parlamento
O povo, sábio, diz que “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte”. Berardo não é tolo. Tolos somos nós. E de arte está bem servido. Até tem uma colecção de arte.
Até há uma semana havia duas coisas que nos irritavam nos depoimentos feitos nas inúmeras comissões de inquérito do Parlamento: que fossem para lá mentir ou com súbitas e inacreditáveis faltas de memória. Com Joe Berardo foi diferente. Foi para lá dizer as coisas como elas são e isso irritou-nos ainda mais. Compreende-se. A realidade que ele contou ao país é difícil de aceitar e mais ainda quando nos é servida com um misto de soberba e de amoralidade.
Mas enfrentemos: pouco ou nada do que Berardo nos trouxe na inenarrável sessão da comissão de inquérito aos negócios ruinosos da Caixa Geral de Depósitos é novidade. Nem no conteúdo nem na forma. Em relação a esta, a boçalidade amoral de Berardo não é de agora. Sempre foi assim, pelo menos desde que habita o espaço público. Não é defeito, é feitio. Mas qual é a elite que não desvaloriza um feitio pouco polido ou mesmo rude a quem se apresenta dono de uma colecção de arte daquele calibre? Moderna, para mais.
Quem mais poderia tratar em público uma ministra da Cultura por um machista “babe” e continuar nas boas graças da capital bem pensante e bem relacionada? Só mesmo um homem que está vivo e já tem o nome num museu. De arte moderna.
Mas os factos são mais importantes. Pouco ou nada do que Berardo disse ou reconheceu é novo.
Que esses factos, alguns com mais de uma década, tenham escapado à generalidade dos cidadãos, é normal e compreensível. Têm mais o que fazer do que compreender e acompanhar as peripécias de negócios promíscuos de milhões entre o Estado, bancos e empresários. Basta que estejam disponíveis para pagar as contas que, invariavelmente, sobram para eles enquanto contribuintes.
Mas que deputados, governantes e ex-governantes mostrem espanto com os contornos do caso Berardo é verdadeiramente insultuoso pelo grau de hipocrisia que revela. Tudo foi sendo contado enquanto acontecia. Se não lêem jornais ou não sabem interpretar o que lêem é igualmente grave.
Alguns exemplos, entre muitos.
No Público de 22 de Dezembro de 2007, falava-se do “assalto” ao BCP com a simpatia do Governo e do Banco de Portugal: “Presidente da CGD na primeira linha para o BCP – Santos Ferreira está disponível, reúne apoios de accionistas e é uma solução bem vista pelo Governo”
Duas semanas depois, contavam-se detalhes de como a operação tinha tido, anteriormente, financiamento da Caixa. “Joe Berardo e aliados compraram acções do BCP com crédito da Caixa – Financiamento de 500 milhões a apoiantes de Santos Ferreira”.
A 3 de Outubro de 2009 o Expresso noticiava que o Banco Comercial Português (BCP) concedeu uma garantia de 8 milhões de euros que evitou que o Santander Totta executasse uma dívida de Joe Berardo nesta instituição bancária. A esse propósito, escrevi no editorial do dia 6 de Outubro do Público: “O Expresso de sábado noticiou que o BCP deu uma garantia de oito milhões de euros a Joe Berardo para que o especulador escapasse à execução de uma dívida que tinha ao Santander. Essa garantia foi dado com o aval directo do presidente do BCP, Carlos Santos Ferreira. Berardo é accionista do BCP, foi determinante no “assalto” à instituição e agora é presidente do seu Conselho de Remunerações. Logo, ele é decisivo na fixação das remunerações dos administradores… que lhe dão as garantias bancárias. Se isto não é promiscuidade e duplo conflito de interesses…”
Em 2010, Pedro Santos Guerreiro e Fernando Sobral publicaram um perfil de Berardo rico em detalhes no Jornal de Negócios onde já se contava a tragédia em curso depois da euforia do “bar aberto” dos anos anteriores. Isso mesmo foi recordado há dias pelo então director do jornal.
Mesmo as peripécias com a colecção de arte dada como garantia aos bancos, no Expresso de 22 de Novembro de 2016 revela-se o que o Governo já sabia: “Sobre a possibilidade de 75% da Coleção Berardo ser garantia de um empréstimo contraído por Joe Berardo com a Caixa Geral de Depósitos, que agora reclama em tribunal a execução da dívida (de 2,9 milhões de euros), o Ministério da Cultura diz ao Expresso que “a equipa do comendador Berardo assegurou, no decurso das negociações para a renovação do protocolo, que não há qualquer hipoteca pendente sobre a Coleção, nem global nem parcialmente.””
Será que a CGD foi alertada disso pelo Ministério da Cultura? Ou, como é habitual, o braço direito do Estado não sabe o que anda o direito a fazer?
Isto é uma pequena amostra do que se consegue com alguma memória, um computador e uma ligação à internet.
O caso Berardo é tudo menos novo. Quem quisesse saber, sabia da promiscuidade entre o Governo de José Sócrates, o Banco de Portugal, a Caixa Geral de Depósitos, o BCP ou o BES. Sabia também de como esses negócios acabaram numa dívida imensa e de como o empresário já tinha tirado a colecção de arte do alcance dos bancos, Caixa incluída.
Deputados e governantes tinham obrigação suficiente de saber estas coisas ao ponto de evitarem agora o ar de indignação que colocaram quando o comendador, há dias, se riu na sua e na nossa cara.
Se o único problema que encontram em toda esta triste história é o tom boçal do protagonista, então só podemos concluir que até aceitamos ser aldrabados e pagar contas de centenas de milhões, desde que não vão ao Parlamento fazer de nós parvos. Isso é que já ultrapassa todas as marcas.
Tivesse Berardo trocado a t-shirt preta e o coração na lapela por um tom institucional e pesaroso, lamentando as agruras da vida e os infortúnios da economia, da crise e dos mercados, e o país seguiria certamente o seu curso entretido com o último golo de Ronaldo ou as perspectivas da próxima jornada da Liga. O espectáculo dado pelo regime nos últimos dias é tão triste como o de Berardo. Afinal, são cúmplices um do outro. São irmãos gémeos.
Repare-se que o corre-corre para ir para tribunal e retirar as comendas ao comendador não resulta dos factos, alguns velhos de 12 anos. Decorrem do desplante do agraciado, que naquela histórica tarde no Parlamento não soube honrar a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
Que diabo, um calote de mil milhões ainda vá que não vá. Mas um “ah-ah-ah” pausado de escárnio ninguém pode deixar passar impune.
Como o assunto não vai acabar aqui, é bom que quem de direito tome já atenção ao futuro da colecção de arte. O acordo para a manter no CCB foi prolongado até 2022. Mas e depois disso?
Leiam, por favor, esta peça da Visão de Outubro de 2017: “Coleção Berardo: Como o Estado perdeu um trunfo numa história de milhões”. Assim evitam indignações tardias daqui a três anos.
O povo, sábio, diz que “Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte”. O comendador Berardo não é tolo. Tolos somos nós. E de arte está bem servido. Até tem uma colecção.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo a nova ortografia.
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