Abusos do Estado incentivados por Lei
Os inspetores estavam a mandar parar carros na estrada, porque essa possibilidade está na lei e, portanto, não lhes ocorreu que seria uma prática abusiva e até absurda.
Quem já viajou por alguns países do chamado terceiro mundo sabe que o único cenário em que temos quase a certeza que vamos ser vítimas de algum crime é o momento em que somos mandados parar por polícias. Nestas “operações stop” somos habitualmente confrontados com algum tipo de assalto ou extorsão, pelo que é mais seguro não nos termos que encontrar com homens fardados e legitimados pela autoridade de Estado.
Lembrei-me disto quando vi a Autoridade Tributária fazer operações stop para cobrança de dívidas fiscais. Não é a mesma coisa, claro. Mas a sensação de nos sentirmos esmagados pelo poder de quem representa o Estado é a mesma. Se em países do terceiro mundo os abusos dos agentes da autoridade se fazem pela ausência de lei e de verdadeiro Estado de Direito, em países mais evoluídos como Portugal fazem-se – não raras vezes – porque a Lei o prevê ou permite. E não há nada pior do que abusos legitimados por Lei ou por quem tem o dever de zelar pelo cumprimento da mesma. Os inspetores estavam a mandar parar carros na estrada, porque essa possibilidade está na lei e, portanto, não lhes ocorreu que seria uma prática abusiva e até absurda. Aliás, No campo fiscal está instituído todo um sistema que incentiva o abuso: prémios monetários para funcionários da AT em função de objetivos de cobrança fiscal; a criação de um organismo especifico para controlar os chamados grandes contribuintes (que pelo facto de terem avultados rendimentos e pagarem muitos impostos, pelos vistos tornam-se suspeitos de alguma coisa) e o acesso aos saldos bancários de contribuintes mesmo sem qualquer indício de ilícito; a imposição a quem não concorde com uma decisão do fisco ter que pagar primeiro (ou garantir o pagamento) e depois reclamar. No fundo, há todo um sistema criado para cobrar o mais possível e não propriamente para garantir o equilíbrio e a justiça fiscal. O Estado existe para servir os cidadãos e não para se servir deles, pelo que depois de passarmos do 8 para o 80 em termos de eficácia do fisco, deve ser uma prioridade política reequilibrar as relações do Estado com os contribuintes.
Também no campo da justiça penal têm sido vários os sinais de contração dos direitos dos cidadãos. Para além de perigoso, este é um caminho que não faz qualquer sentido num país que é considerado dos mais seguros do mundo. São múltiplos os exemplos: a vulgarização das detenções para interrogatório de pessoas que se apresentariam voluntariamente perante as autoridades e que são mantidas presas durante vários dias (com o claro propósito de as diminuir e humilhar); o abuso de métodos intrusivos como escutas telefónicas – segundo dados publicados recentemente, foram mais de 14.000 telemóveis sob escuta em Portugal no último ano; o abuso de medidas privativas da liberdade para cidadãos que não oferecem qualquer perigosidade; os inquéritos-crime intermináveis com o permanente contaminação da opinião pública com suspeitas que se eternizam; os ataques tolerados ao sigilo profissional dos advogados; a deturpação do papel do juiz de instrução como juiz das garantias, tolerando-se que seja um “acusador” e “parceiro” dos investigadores, como pelos vistos era o ex “super juiz” Sérgio Moro no Brasil. Neste caso, a mera ocorrência de um juiz que julgou Lula da Silva se tornar Ministro de um governo liderado por um adversário político deveria arrepiar a consciência democrática de todos. É simplesmente intolerável!
O excesso de poder leva quase sempre ao abuso e a uma sensação de impunidade de quem é dotado desse poder. Portanto, como cidadãos devemos ser muito exigentes quanto à existência de leis e mecanismos eficazes que nos protejam dos abusos dos agentes do Estado e, “puxando a brasa à minha sardinha”, devemos valorizar o papel fundamental dos advogados como “contrapoder”.
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