Fintechs e banca tradicional: tecnologia ou psicologia?
As fintechs desenvolvem produtos baseados na forma como as pessoas se comportam enquanto os bancos baseiam as suas ofertas na forma como acham que as pessoas se deveriam comportar.
Passamos uma grande parte dos nossos dias — alguns estudos dizem que chega a um ser um terço do tempo — a pensar sobre dinheiro. Quanto ganhamos, quanto gostávamos de ganhar, quanto ganham os nossos amigos. Como pagar as despesas, como poupar para a educação dos miúdos, como ir de férias. O dinheiro toca todas as partes das nossa vidas, desde as contas do supermercados até às contas nacionais.
O facto de pensarmos imenso sobre dinheiro pode criar-nos a ilusão de que somos bastante bons a geri-lo, mas a realidade é bem mais complexa.
O simples acto de comprar um café é uma decisão financeira bastante complexa. Em primeiro lugar, é preciso quantificar de forma exacta o valor esperado do prazer que vamos ter ao beber o café. Depois, temos de avaliar o custo de oportunidade – tudo aquilo que não vamos comprar por termos gasto o dinheiro no café. Só se o prazer esperado por beber o café for superior ao custo de oportunidade é que faz sentido gastar o dinheiro.
Como não é prático usar este tipo de raciocínio sempre que tem de tomar uma decisão financeira, o ser humano usa atalhos cognitivos para chegar a uma conclusão de forma mais rápida e com menos esforço. Esses atalhos chamam-se heurísticas e são a base da economia comportamental muito em voga nos últimos anos desde que Daniel Kahneman e Richard Thaler ganharam o nobel da economia em 2002 e 2017 respetivamente.
O problema é que estes atalhos são extremamente úteis para tomar decisões sobre quanto pagar por um café mas podem ser desastrosos quando estamos a escolher um crédito à habitação ou a decidir quanto devemos poupar para a reforma.
Nos últimos tempos temos ouvido falar bastante da entrada das fintech em Portugal e da potencial ameaça que podem ser para os bancos tradicionais, especialmente para as gerações mais novas que têm muita dificuldade em aceitar que existe uma realidade fora dos seus telefones. A Revolut e o N26 são dois dos exemplos mais falados, contando o primeiro com mais de 120 mil clientes em Portugal.
Tecnologia, design e facilidade de utilização são geralmente os pontos apontados para o sucesso que estas empresas têm para crescer tão rapidamente. Tudo isso é verdade mas há um factor que é menos falado e que tem uma importância vital para a adesão a este tipo de plataformas. É que estes bancos sabem que as pessoas não são racionais na gestão do seu dinheiro e, ao contrário da banca tradicional, desenvolvem produtos e serviços baseados na maneira como as pessoas se comportam e não como se deviam comportar.
Um exemplo é o facto de as pessoas não tratarem o dinheiro de forma igual. Se fossemos racionais tomaríamos decisões financeiras de acordo com o impacto que as mesmas teriam no nosso património global. Mas, na realidade organizamos o nosso dinheiro de acordo com uma contabilidade mental muito própria e tanto a origem como o destino do dinheiro têm um profundo impacto nas nossas decisões.
Daniel Kahneman e Amos Tversky, num famoso artigo publicado em 1984 no jornal American Psychologist, relatam uma experiência que demonstra bem o poder da contabilidade mental.
A primeira parte da experiência consistia em perguntar a uma série de pessoas para imaginar que tinham comprado um bilhete para o teatro no valor de 10 dólares e que, quando chegavam para ver a peça, apercebiam-se que tinham perdido o bilhete. Comprariam um novo bilhete? A maioria – 54% – disse que não.
A segunda parte consistia num cenário ligeiramente diferente. Desta vez, o bilhete não tinha sido comprado com antecedência e a pessoa quando chegava à bilheteira para o comprar apercebia-se que tinha perdido uma nota de 10 dólares. Comprariam o bilhete na mesma? Desta vez uma grande maioria – 88% – disse que sim.
Mas o que se passa aqui? Temos dois pedaços de papel que valem exatamente o mesmo mas conforme o papel que perdemos tomamos duas decisões diametralmente opostas. A explicação está na contabilidade mental que fazemos e nas sub-contas que criamos na nossa cabeça. Quando perdemos o bilhete de teatro esgotámos a nossa conta destinada a teatro e, por isso, só podemos voltar a comprar um bilhete de teatro quando houver novamente verba para gastar nessa conta. Logo a decisão “racional” é não comprar um novo bilhete. Se, pelo contrário, perdermos a nota de 10 dólares esse dinheiro ainda não tinha sido alocado à conta teatro e sua perda pode ser atribuída a gastos gerais, mantendo a conta de teatro intacta, deixando-nos o caminho aberto para comprar o bilhete.
Geralmente, não devíamos usar este atalho da contabilidade mental pois dá azo a decisões irracionais e, por vezes ruinosas. Gastar todo o reembolso do IRS como se fosse dinheiro do monopólio ou ter dívidas no cartão de crédito com taxas de juro de dois dígitos enquanto mantemos depósitos a prazos remunerados abaixo de 1% são exemplos de caminhos ruinosos para onde a contabilidade mental nos leva.
Mas, por vezes, este tipo de pensamento pode ser útil. Um desses casos é quando temos dificuldade em manter um orçamento familiar equilibrado. Uma hipótese é fazer um orçamento detalhado com todas as despesas do mês e cumpri-lo. Mas é um processo tão chato que rapidamente vamos desistir de o fazer.
Dan Ariely, professor de economia comportamental na Duke University e autor de vários livros sobre o tema, propõe uma estratégia diferente. Criar uma categoria ampla de bens discricionários: coisas sem as quais podemos viver como um almoço gourmet ou uns sapatos caros. Depois é pegar nesse valor e colocá-lo semanalmente num cartão de débito pré-pago. Agora temos um orçamento para itens supérfluos que se renova todas as semanas. Desta forma, os custos de oportunidade dentro da categoria e face às outras categoria ficam mais claros e ajudam-nos a não gastar demais em coisas supérfluas à custa de gastar menos em coisas essenciais.
Foi exactamente este raciocínio que esteve por detrás da criação do programa safe to spend do banco Simple, que pertence ao grupo espanhol BBVA. Basicamente, o que o banco faz é perceber quais são as despesas mensais fixas de cada um dos seus clientes (além de despesas, também podem ser parametrizados objectivos de poupança) atribuindo-lhe depois uma margem de segurança. O que sobrar vai para a rubrica safe to spend tirando de cima das pessoas o peso de estar sempre a fazer contas ao dinheiro.
É óbvio que é preciso alguma tecnologia para fazer isto, mas sem o insight profundamente humano de que as pessoas usam estratégias de contabilidade mental – este serviço extremamente bem sucedido – nunca teria sido criado.
Este tipo de insight pode também ser usado para aumentar as poupanças. A simples criação de vários cofres virtuais, cada um para um objectivo diferente, que a Revolut permite fazer, aumenta a nossa predisposição para poupar. E, além disso, o facto de criarmos cofres com objetivos diferentes não só aumenta a nossa predisposição para poupar como diminui a nossa propensão para contabilidade criativa entre umas contas e outras.
Na verdade, se estiver por escrito, é sempre mais difícil passar a verba no “cofre da poupança para educação das crianças” para uma semana de férias nas Caraíbas.
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