As comissões de uma banca à defesa
A estratégia da banca para responder às fintech assente no preço será tanto mais infrutífera quanto maior for a escala de utilização de algumas dessas soluções face à das suas congéneres portuguesas.
Nos últimos dias, ficámos a saber que a gratuitidade das transferências MB Way tem os dias contados. Dias antes, na semana passada, tínhamos também ficado a saber que em Portugal já há juros que não são para pagar e que alguns contratos são mesmo para se rasgar. No primeiro caso, haverá a cobrança de comissões que até aqui não eram cobradas. No segundo caso, haverá o “bail-in” de um custo de financiamento que até aqui era incorrido e que agora deixará de o ser.
Na prática, ambos convergem no mesmo sentido, ou seja, no sentido da constituição de proveitos adicionais para os respectivos bancos. Tudo isto mostra como a prazo, sobretudo nos bancos tradicionais, não será de excluir que os depositantes venham ainda a pagar às instituições financeiras para que estas lhes guardem o dinheiro.
Já é isso que sucede com o Estado em relação aos investidores em dívida pública, por isso, nada melhor do que o banco do Estado para inaugurar a prática na banca comercial! Mas, na minha opinião, são práticas, todas elas, que resultarão contraproducentes, acelerando a migração dos clientes para operadores alternativos.
Ora, as mudanças em curso no sector bancário são extraordinárias e provavelmente irreversíveis. São o resultado de alterações de tecnologia, de padrões de consumo e, cada vez mais, também de regulação. A revista “The Economist” escrevia há meses (“What bankers need to know about the mobile generation”) que 85% dos “millennials” norte-americanos (aqueles nascidos entre 1981 e 1996) são utilizadores de serviços bancários móveis e que entre a geração Z (nascidos depois de 1996) a percentagem será naturalmente maior.
No mesmo artigo, a publicação citava ainda um outro estudo conduzido em 17 países distintos – questionando sobre qual de dois itens, a carteira ou o telemóvel, seria mais importante no dia-a-dia? – e no qual 70% dos inquiridos com menos de 25 anos respondera “o telemóvel”. Sem surpresa, quase todos os dias assistimos à criação de novas “fintech” e, progressivamente, também ao surgimento dos chamados bancos digitais (“digital-only”).
Em Portugal, também há sinais destas mudanças, sobretudo vindas do lado da procura, ou seja, do lado dos consumidores (e não tanto entre a oferta ou a “indústria”, menos ainda da nacional). Segundo o Banco de Portugal (“Relatório dos Sistemas de Pagamentos”, de Abril passado), em 2018, no sistema financeiro nacional, as transferências com cartão, potenciadas pelas aplicações móveis, cresceram 28% em número e 14% em valor. Em comparação, as compras com cartão e, sobretudo, os levantamentos de numerário conheceram ritmos de crescimento mais modestos.
No caso dos levantamentos de numerário, que em 2018 cresceram apenas 1% em número e 2,5% em valor, e que foram acompanhados de uma redução de 2,3% no número de caixas automáticos, a evidência vai revelando aquela que já é uma tendência noutros países europeus: a transição para uma economia na qual as notas e as moedas físicas perderão relevância enquanto meio de pagamento.
O futuro da finança é hoje tema de discussão entre os participantes do sistema financeiro e, em alguns países, é promovido activamente pelos reguladores. No Reino Unido, sob encomenda do Banco de Inglaterra, acaba de ser publicado um estudo intitulado “Future of Finance”. É um trabalho que, apesar de pensado para o mercado britânico, vale a pena ler, porque o Reino Unido é o país da Europa onde mais se tem trabalhado na ideia de “open banking” e na abertura do sistema bancário aos novos ‘entrantes’ digitais. Em Portugal, pelo contrário, vão-se arrastando os pés.
- Primeiro, tivemos o atraso do costume na transposição da directiva europeia dos serviços de pagamento (DSP2), que em Portugal apenas foi transposta em Setembro de 2018.
- Agora, aguardamos para ver se, no próximo dia 14 de setembro, conforme previsto no regulamento 2018/389 da União Europeia, que ao contrário da directiva é de aplicação imediata, estarão operacionais as plataformas de acesso às iniciações de pagamentos.
A relação entre os novos prestadores de serviços de pagamento, que iniciam os pagamentos, e os prestadores de serviços de pagamentos que gerem as contas bancárias é dada a fricções. Os bancos, que são aqueles que gerem as contas, queixam-se de que, sob o augúrio da DSP2, estão a ser obrigados a “entregar o ouro ao bandido” e a contribuir para o desenvolvimento de concorrentes que hoje são adjacentes, mas que amanhã serão directos. As “fintech” queixam-se de que os bancos dificultam a operacionalização das plataformas sem as quais não podem operar.
As críticas de uns e de outros são, ambas, meritórias. Por um lado, há evidência – conforme exposto pela Autoridade da Concorrência em “Inovação Tecnológica e Concorrência no Sector Financeiro em Portugal” (de Outubro de 2018) – da existência de “riscos de encerramento do mercado”, bloqueando a interoperabilidade dos sistemas de acesso às contas bancárias por parte das “fintech”. Por outro lado, também se entende a crítica dos bancos porque o custo de aquisição dos clientes e o tratamento original dos seus dados é de facto suportado e garantido por eles e não pelas “fintech”.
Mas os ventos correm na direcção da desintermediação bancária. São os consumidores e os avanços tecnológicos que assim o determinam, por isso, a regulação e os operadores acabarão por acompanhar essa mudança, compreendendo-a e adaptando-se a ela. É por esta razão, não obstante os esforços negativos de alguns, preocupados em encerrar o mercado em vez de o abrir, que a penetração no mercado português de soluções já disponíveis noutros mercados tornará pouco eficaz uma estratégia de concorrência baseada no preço.
A estratégia de preço será tanto mais infrutífera quanto maior for a escala de utilização de algumas dessas soluções face à das suas congéneres portuguesas. A não ser que, como também vem nos manuais de “marketing” agressivo, a estratégia seja a de esmifrar aqueles que, mesmo dispondo de uma alternativa de baixo custo, continuarem a pagar. Sendo uma estratégia lucrativa no curto prazo, sobretudo num mercado concentrado como o português, é também uma de vistas curtas e própria de produtos em fim de ciclo, dependendo também do agrupamento (“bundling”) de serviços num sector cuja oferta futura se prevê mais especializada (ou menos agrupada).
A chave do sucesso nos serviços digitais reside na sua escalabilidade – um palavrão que até há pouco tempo não fazia parte da Língua Portuguesa – e na área financeira não será diferente. Sobre isto, a Ant Financial – a subsidiária de pagamentos do grupo chinês Aliababa e que é hoje a maior entidade de serviços financeiros do mundo –, que teria há três anos quinhentos milhões de clientes, tem em 2019 (segundo o estudo do Banco de Inglaterra citado antes) mais de mil milhões de clientes! Sem surpresa, também já está em Portugal. O mesmo sucede com alguns bancos digitais que, operando através de livres prestações de serviços, já têm alguns milhares de clientes nacionais, oferecendo serviços de fácil acesso e a baixo custo.
Em suma, na economia digital, à medida que a escala vai aumentando para a casa dos milhões e dos milhares de milhões de consumidores, é de esperar que o custo marginal tenda para zero e, por conseguinte, que também o preço cobrado pelos serviços tenda para próximo de zero. Para os consumidores isto é uma maravilha. Para os operadores, levanta desafios concorrenciais significativos, mas relativamente aos quais uma postura defensiva constituirá a prazo o caminho da decadência.
Alguns reguladores já entenderam isto – sobretudo na Ásia. Em Hong Kong, um dos mercados bancários mais concentrados do mundo, o regulador acaba de conceder oito licenças a bancos digitais. E em Singapura, um dos mercados mais desenvolvidos, a autoridade monetária acaba de anunciar um concurso para a atribuição de cinco licenças para bancos digitais.
Por tudo isto, em Portugal, o supervisor bancário faria muito bem se, proactivamente, encabeçasse o sentido da mudança. Não basta aceitar a presença de novos operadores, registando-os ao abrigo das regras europeias do mercado comum, mas sem grande entusiasmo nem relevância estratégica. Infelizmente, na prática é isto que acontece, porque, para além dos discursos de ocasião, não se vislumbra a proactividade nem a sensibilidade desejada.
Sem desprimor, o melhor que os nossos reguladores conseguem é o Portugal FinLab, no âmbito do qual “as fintech participantes passam a dispor de um ponto de contacto único com os diferentes reguladores financeiros nacionais, através do qual é proporcionada uma visão integrada dos requisitos necessários para a implementação dos seus projetos e clarificado o enquadramento estabelecido pela legislação e regulamentação portuguesa” (BdP, vide referência anterior, Abril 2019).
Sendo alguma coisa, a verdade é que não chega.
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