Para quando a reforma do sistema político?
Já não é possível optar por fechar os olhos, manter tudo como está e esperar que o povo português torne a depositar a sua confiança neste sistema político.
Ao fim de 45 anos de vigência, a III República já é o regime político mais duradouro sob égide da bandeira republicana. A solução encontrada pelo legislador constituinte teve o condão de consagrar um modelo assente na perpetuação da estabilidade política, onde o equilíbrio de poderes conduziu, na prática, a um rotativismo governamental entre os dois maiores partidos, gerando um sistema conservador que, salvo as exceções de PRD, BE e PAN, não admite grandes variações eleitorais. Todavia, mais do que nunca, constata-se que o equilíbrio gerado pelo sistema político degenerou num amorfismo político gritante.
Perante a inevitável uniformização dos políticos – manifestada na convergência generalizada dos partidos para o «centrão» do sistema, qual “fonte eterna” de votos – o povo português alheou-se do discurso dos políticos, mas não necessariamente do discurso político, pelo que frequentemente vemos a sociedade civil a empregar esforços em torno de causas cívicas.
O crescimento ininterrupto da abstenção em Portugal é o corolário do desgaste do regime e, subsequentemente, expressão máxima do afastamento dos cidadãos face ao poder político. Não é de espantar que este seja um contexto propício ao florescimento dos múltiplos fenómenos que colocam em causa a Democracia: a corrupção, a desinformação e a políticodependência. Claro está que um povo politicamente anestesiado é mais facilmente manipulado.
Assim, a geração que agora paulatinamente começa a ganhar protagonismo no panorama político vê-se a braços com uma pesadíssima herança. A descrença popular exige uma alteração do paradigma, o que poderá ser feito em múltiplas instâncias. A renovação dos protagonistas, do qual foi exemplo a louvável decisão de Rui Rio nas escolhas para encabeçar as listas do PSD às eleições legislativas, é uma posição que há muito se exigia.
Note-se que grande parte dos protagonistas da Assembleia Constituinte tinha menos de 35 anos em 1974, entre os quais se contam Jorge Miranda, com 33 anos, Vital Moreira, com 29 anos, Marcelo Rebelo de Sousa, com 25 anos, e Freitas do Amaral, líder partidário aos 33 anos. O próprio Salgueiro Maia tinha 29 anos à data. Todavia, a mera renovação geracional, apesar de necessária, não é suficiente.
A descrença generalizada no atual modelo político, que se traduz numa até agora irreversível taxa de abstenção, é por demais evidente, independentemente dos seus protagonistas. Destarte, urge que haja uma renovação não somente de caras, mas também do sistema político.
Primeiramente, é imperiosa a abertura dos partidos políticos. Esta não se deve fazer pela via da abolição de quotas, nem pela existência de atabalhoadas eleições primárias. Ambos os modelos conduziram a um acentuar das práticas de caciquismo no cerne dos partidos. A verdadeira abertura dar-se-á por via da reforma eleitoral que permita a seleção dos candidatos partidários em comunhão com o eleitor.
Nesta matéria, merece destaque a proposta já por diversas vezes badalada por Ribeiro e Castro. Sem menosprezar a proporcionalidade do sistema eleitoral, segundo o método de Hondt, a proposta visa a consagração de círculos uninominais, complementares com os círculos plurinominais.
Neste regime de voto uninominal, cada eleitor dispõe de dois votos no seu boletim: com o primeiro escolhe a lista partidária que prefere, de entre as apresentadas no círculo plurinominal (distrital ou regional). Com o segundo, escolhe o seu deputado, de entre os candidatos no círculo uninominal (local). O voto que determina a composição global do Parlamento é este voto partidário, que define a quota territorial de mandatos a que cada partido tem direito, somando os uninominais e de lista.
Semelhante a esta proposta, ainda que com ligeiras alterações, coloca-se a alternativa de, mantendo os círculos plurinominais, o cidadão ter a possibilidade de ordenar a lista de deputados, que é apresentada pelos partidos políticos por ordem alfabética. O poder de os cidadãos optarem entre os candidatos propostos pelos partidos permite um maior escrutínio dos representantes em face dos representados, ao mesmo tempo que lhes exige alguma notoriedade e reconhecimento público para o exercício dos cargos.
É evidente que estas propostas comportam riscos, nomeadamente por reforçarem o combate político individual entre candidatos do mesmo partido. Ademais, há o risco de sobreposição dos argumentos financeiros dos candidatos ao seu programa político, acabando por ganhar mais notoriedade aqueles que gozem de maior capacidade financeira para dinamizar uma campanha mais mediática. Todavia, não será este um custo de oportunidade substancialmente inferior à contínua degradação do regime, sob pena de o afastamento chegar a um ponto que não permita retrocesso?
Em segundo lugar, a revisão constitucional de 1982, fomentada pelo temor que Mário Soares e a AD tinham em relação a Ramalho Eanes, acabou por relegar o Presidente da República para um papel secundário no plano político português. Ora, parece-nos algo descabido que o órgão político que goza de maior legitimidade democrática, uma vez que o Povo português vota diretamente numa personalidade, ao contrário do que acontece na Assembleia da República ou nas autarquias locais, seja por sua vez aquele que está mais limitado na sua atuação.
O elenco de competências do Presidente da República, presente nos Art.º 133.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa, atribui-lhe um papel de afloramento do sistema – que Marcelo tem potencializado por via da sua extraordinária capacidade de interação com os eleitores –, longe da preponderância que um sistema Presidencialista, ainda que mitigado, exigiria.
É certo que há um precedente desfavorável no sistema político nacional, face à existência efémera e turbulenta dos três governos de iniciativa presidencial. Contudo, tal não deve obstar a que reconheçamos utilidade à capacidade de o Presidente dispor de ferramentas autónomas para a solução de imbróglios políticos, para lá do recurso ao inócuo poder moderador.
Despir o Presidente de poderes de intervenção políticos mais não foi que privar o sistema do seu cerne, que rapidamente foi substituído pela preponderância do primeiro-ministro – note-se que este goza de uma legitimidade democrática muitíssimo inferior. Assim, incoerentemente, o representante máximo de todos os portugueses é também aquele que menos poder tem para os representar.
Podemos todos alegar, com envergonhada inocência, que ninguém deu pelo depauperar da qualidade da nossa democracia. Todavia, aqui chegados, já não é possível optar por fechar os olhos, manter tudo como está, salvo pontuais alterações legais, e esperar que o povo português torne a depositar a sua confiança neste sistema político. Já dizia Einstein: “Loucura é continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.
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