Estado da nação rima mais com reversão do que com visão

De certa forma, estes quatro anos em pouco ou nada contribuíram para melhorar o potencial da economia portuguesa.

Economicamente, Portugal está agora melhor do que há 4 anos, tal como de resto em 2015 estava incomparavelmente melhor do que em 2011. A última legislatura não foi o desastre que muitos (eu incluído) temiam no início. No entanto, podia e devia ter-se feito bem mais dadas as condições de partida e, principalmente, tendo em conta o benigno enquadramento externo. Com as taxas de juro no nível mais baixo de sempre, com o petróleo barato e estável, com um crescimento sustentado dos nossos principais parceiros (principalmente de Espanha) e finalmente, com o “milagre” do turismo era possível, e necessário, ter feito melhor.

O baixo nível de investimento (abaixo do previsto pelo anterior Governo), a deterioração dos serviços prestados pelo Estado e, principalmente, o regresso do défice externo, mesmo com baixo investimento e com o crescimento do turismo, são sinais de que a economia portuguesa continua bastante vulnerável mesmo depois destes 4 magníficos anos.

Já dizia Verbal Kint (Kevin Spacey), no filme “Os suspeitos do costume”, que o maior truque do Diabo foi convencer-nos de que não existia. Neste caso, o maior truque do Governo foi (tentar) convencer-nos que o Diabo (crise financeira) não veio porque se convenceu dos méritos do famoso cenário macro de Mário Centeno e da sua equipa. Ora, nada mais errado, como demonstra o gráfico em baixo que resume o estado da nação e compara a montanha russa da evolução do diferencial da taxa de juro a 10 anos da república portuguesa com a sua congénere espanhola:

Spread da yield a 10 anos vs Alemanha (%) e principais eventos

Fonte: BCE e cálculos do autor

O Diabo foi para outro lado de facto graças ás medidas do Governo, mas não às suas medidas originais. Felizmente, António Costa e a equipa de Mário Centeno corrigiram a tempo o péssimo início de mandato – ainda alguém se lembra do chumbo da Comissão Europeia e do mercado ao primeiro orçamento de Mário Centeno em fevereiro de 2016 e a ameaça de sanções que pairou até ao início de 2017? A isto juntou-se o excelente enquadramento externo, com a expansão mais longa da história da área do euro, e com um crescimento na ordem dos 3-4% em Espanha. E claro, a baixa inflação e uma politica monetária da área do euro cada vez mais expansionista.

Indiscutivelmente, um grande marco dos últimos 4 anos foi a combinação do cumprimento das metas orçamentais (nominais) com um crescimento acima da média da União Europeia e da área do Euro, alguma expansão orçamental e uma estabilização do setor financeiro.

No entanto, na verdade não só não se virou a pagina da austeridade – trocaram se impostos diretos por indiretos e privilegiou-se a função pública em detrimento do investimento – como não se fizeram reformas de fundo no Estado e na economia e ainda estará para ver qual o custo final da tal estabilização do setor financeiro.

Felizmente, não se reverteram as grandes mudanças no mercado de trabalho acordadas durante o programa de ajustamento, mas quando se combina o efeito de medidas como a redução do IVA da restauração (um setor não transacionável) com a redução dos horários e aumento de salários na função pública, chegamos sem surpresa a uma deterioração da competitividade da economia.

Mais detalhadamente:

  • O PIB cresceu acima de 2% por ano, bem acima da média dos últimos 20 anos (um pouco menos de 1%). Depois de uma forte desaceleração em 2016, fruto da quebra do comercio internacional e da retração do investimento devido às dúvidas iniciais quanto ao cumprimento das metas orçamentais, a atividade recuperou, suportada pelo consumo das famílias e pelas exportações (principalmente pelo turismo).
  • O desemprego diminuiu acentuadamente, para 6%, cerca de metade do valor do início da legislatura. Esta descida é, ao mesmo tempo, uma boa notícia e um sinal de alerta. Por um lado, menos desemprego melhora indiscutivelmente o rendimento das famílias, ajuda às finanças publicas e torna a expansão económica auto sustentada. Mas, por outro lado, grande parte deste emprego está a ser criado em setores de baixa produtividade (não transacionáveis como construção e turismo) com salários médios bastante mais baixos do que os verificados antes da crise.
  • As exportações continuaram a crescer, principalmente ajudadas pelo turismo, mas não só. O peso das exportações de bens no PIB subiu para 45%, acima dos 40% de 2015. Já o turismo, fruto de uma maior procura externa, continuou a crescer, representando agora 15% do PIB (o que compara com 12% em 2015 e 9% em 2009). Ainda assim, a recente queda de procura por parte de turistas britânicos e europeus pode ser um sinal de que passada a fase da expansão acentuada, estamos numa fase de maior moderação.
  • Quanto às finanças públicas, a história é bastante conhecida: o défice orçamental praticamente desapareceu e a dívida pública começou finalmente a descer (em percentagem do PIB), ainda que esteja em valores extremamente elevados (perto de 120% do PIB). No entanto, quando vemos a evolução do saldo primário estrutural (que realmente mede o esforço orçamental, já que exclui a descida dos juros e o contributo do ciclo económico), vemos que este pouco se alterou em 4 anos, passando de um superavit de 2,4% do PIB em 2015 para 2,8% em 2019 (estimado pela Comissão Europeia.
  • A dívida privada continuou a descer, ainda que se mantenha em níveis elevados (perto de 200% do PIB). No entanto, a poupança das famílias, que tem sido tradicionalmente baixa em Portugal, atingiu os valores mais baixos de sempre, mesmo com a famosa “devolução de rendimentos”, e representa agora 4% do rendimento disponível, o que compara com 5% em 2015 e 7-10% antes da crise). Ou seja, ainda que seja positivo que as famílias aproveitem esta fase de descida de juros e melhoria económica para reduzir a dívida, não deixa de ser preocupante que o estejam a fazer ao mesmo tempo que aumentam o consumo esgotando assim praticamente a “almofada” para suportar a próxima recessão.
  • O investimento (público e privado) é a principal desilusão destes 4 anos. Ambos os casos estão, de acordo com os dados de 2018, próximos dos valores mais baixos de sempre em percentagem do PIB – 3% do PIB no caso do investimento público e 14% no caso do investimento privado. Inclusivamente, o investimento (público) até decresceu cerca de 20% em 2016, no ano em que supostamente se virou a pagina da austeridade. Não deixa de ser irónico que, com as taxas de juro mais baixas de sempre, a prioridade na despesa tenha sido não o investimento público, mas sim os custos com o pessoal, quer seja pela redução do horário de trabalho para as 35 horas quer seja pela reversão dos cortes que já vinham desde 2010.
  • Quanto ao investimento privado, nos últimos 4 anos pouco se fez para remover os obstáculos identificados pelas empresas. Baixaram os custos de financiamento, principalmente graças à politica do BCE, mas pouco (ou nada) se fez para reduzir obstáculos como custos energéticos, regulação ou impostos. E com pouco investimento e com baixa produtividade, não há milagres e haverá menos crescimento no futuro…
  • E, por último, o défice mais importante – o défice externo que é o principal sinal de alarme e o verdadeiro teste do algodão quanto à sustentabilidade do “milagre” da geringonça: No primeiro trimestre deste ano, Portugal voltou a registar um défice externo (mesmo com a contribuição extraordinária do turismo!). Para 2019 como um todo, o saldo da balança corrente e de capital deve voltar a ser ligeiramente deficitário (0.3% do PIB) pela primeira vez desde 2010. A balança de transações correntes já tinha voltado a registar um défice no ano passado (0.4% do PIB) e deverá registar este ano um défice de perto de 1%. Com o regresso dos défices externos, voltamos inevitavelmente a aumentar a divida externa (que desceu no primeiro trimestre deste ano para 88% do PIB) e, mais tarde ou mais, cedo voltaremos a ter problemas de financiamento – problemas esses que como sabemos costumam ser resolvidos a mal….

Este regresso a um défice externo é particularmente preocupante quando vemos que as perspetivas para os próximos tempos são ainda piores. Não só a taxa de poupança é baixa, como há uma grande necessidade de investimento, que dependerá sempre de importações, como também as exportações (incluindo o turismo) deverão crescer cada vez menos à medida que a economia mundial entra numa desacelera e está cada vez mais próxima de uma recessão.
E os próximos 4 anos?

Nesta legislatura, o enquadramento externo ajudou ao crescimento e a memória ainda fresca da bancarrota moderou o ímpeto para piores políticas de curto prazo. No entanto, quando se pensa em reformas estruturais e em qual é a estratégia económica do pais, o estado da nação rima mais com reversão e pouco com visão. De certa forma, estes 4 anos em pouco ou nada contribuíram para melhorar o potencial da economia portuguesa.

Taxa de juro a 10 anos (%)

Fonte: BCE e cálculos do autor

No entanto, nem tudo é mau. Ainda que a procura externa esteja a desacelerar, o enquadramento externo continua a ser bastante positivo. As taxas de juro estão no nível mais baixo de sempre e o próximo governo tem todas as condições para o aproveitar. Se os últimos 4 anos foram de estabilização, que os próximos 4 sejam os das reformas. Serão mesmo, ou teremos mais 4 anos apenas a cumprir os mínimos à espera da próxima crise?

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